quarta-feira, 7 de julho de 2010

O Professor de Sociologia

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB , nos artigos 35 e 36, estipula um currículo voltado, não para conteúdos, como acontecia num passado não muito remoto, mas para competências. Nenhum problema haveria se isso não ocorresse para atender as exigências do mercado, comprometendo a formação dos professores de sociologia. Observe-se que não é exatamente o ser humano que se quer atingir, mas, antes de qualquer coisa, um consumidor em potencial, o que colide com a proposta da sociologia crítica, libertária por essência.


Na realidade da LDB de 1996, o currículo ou doutrina curricular tinha como referência não mais a disciplina escolar clássica, mas sim as capacidades que cada uma das disciplinas pudessem criar nos alunos, ou seja, na capacidade do estudante de flexibilizar suas competências, otimizar seu tempo de estudo e se preparar para competir com seus pares no mercado, massacrando-os, se possível. A LDB previa arquitetar jovens adequados ao mundo do trabalho, determinado pelo mercado. Os conteúdos disciplinares se concebiam, assim, como meios e não como fins em si mesmos, o que não acarretaria nenhum problema, não fosse o mercado o fim ao qual se queria chegar.

Por sua natureza, a sociologia não deve ter uma finalidade meramente útil para o mercado, o que pode ter contribuído para afastá-la do currículo escolar no período da hegemonia do mercado na educação. Essa realidade faz com que a formação de professores de sociologia constitua um desafio para se suplantar os velhos paradigmas de formação, dentre os quais, o da racionalidade técnica. Além disso, a formação desses professores é um processo também político, na medida em que almeja uma transformação na estrutura da educação brasileira e, portanto, das estruturas políticas, econômicas e sociais, o que pressupõe uma mudança estratégica do lócus do aprendizado, de uma perspectiva do capital para a sociedade. É nessa direção que deve seguir a formação dos professores de sociologia.

Muito do que acontece em sala de aula, do desinteresse do aluno ao desestímulo do professor, advém da formação mercadológica anterior. Essa concepção, via de regra, forma as pessoas, ou para um mundo que não mais existe, ou para a mera reprodução do capital, escolarizando para o mercado, como se a educação não devesse ser algo maior, para a vida social. A construção de uma sociedade moderna não diz respeito apenas ao capital, mas, também, aos trabalhadores, que movimentam os meios de produção, assim como aos demais segmentos sociais. E diz respeito ainda à correlação política real de forças. Por isso a sociologia voltou ao currículo, depois de galgar uma parte do Estado.

A proposta que apresento aqui tem como objetivo a efetivação de um programa dentro do sistema capitalista brasileiro, de um arcabouço sociológico voltado para o fortalecimento do mundo do trabalho. Isso não pode levar a ilusão de que se possa romper com o modelo vigente num curto prazo. O que se pode fazer é repará-lo e aperfeiçoá-lo, formando para a cidadania crítica e não permitindo que se restrinja o aprendizado à preparação para o vestibular e/ou para o mercado de trabalho.

Para compatibilizar tudo isso, os métodos e currículos devem mudar o foco, propiciando um aprendizado com significado e o educando ser concebido como agente do ato de aprender. O professor deve instigar a curiosidade do educando, ser um ‘facilitador’, o ‘suporte’, mas não só. Ele precisa romper com a ditadura do currículo e o ensino centrado na memorização mecânica de conteúdos. Longe da ilusão de que o aluno possa aprender tudo sozinho, trata-se de reforçar a autonomia do educando e estimular sua criatividade, com vistas à construção de uma sociedade cada vez mais livre e humana. O professor, que há tempos deixou de ser a única fonte de conhecimentos, mas que longe está de ser desnecessário, deve conduzir o aluno a desenvolver seu potencial crítico, sempre auxiliado a exercer a sua crítica com radicalidade – crítica que vai até às raízes –, mas sem quaisquer sectarismos e preconceitos, sem reducionismos ideológicos.

Isso corresponde a dizer que é hora de livrar o currículo escolar da ditadura do mercado e repensá-lo em termos de uma educação-cidadã, qual seja, uma educação sociológica, que contribua para formar os indivíduos como cidadãos e cidadãos críticos, que participam ativamente do processo social, construindo experiências de educação democrática, participativa, autônoma e sintonizada com os interesses das classes populares. Os próprios educandos, articulando teoria e prática, deverão se colocar naturalmente contra esta ditadura do mercado ao se darem conta da realidade dada e vislumbrarem possibilidades reais de mudança. A isto dou o nome de participação efetiva no processo de aprendizagem.

Isso pode ocorrer, estrategicamente, através da articulação saudável entre educação e cidadania. Trata-se de uma estratégia de ampliação da cidadania burguesa, que possa equilibrar as desigualdades sociais, num primeiro momento, até criar as condições para erradicá-la e passar a um estágio superior de sociabilidade e, neste sentido, sigo na direção contrária das propostas defendidas por Ivo Tonet em seus escritos. Essa articulação pressupõe a universalização do acesso à educação, garantindo um nível cada vez mais elevado de acesso ao saber. O professor de sociologia que está sendo formado deve buscar métodos democráticos e ativos de ensino-aprendizagem, estabelecendo uma interação ativa entre a escola e a comunidade e o estabelecimento de formas democráticas e participativas tanto na gestão da escola quanto na elaboração da política educacional mais geral.

Com efeito, a busca da cidadania burguesa com vista á emancipação deve traduzir-se numa arquitetura que rompa com a tradicional disciplina dos corpos e mentes, onde o espaço escolar deixe de ser uma esfera de poder, um fator disciplinador que almeja preparar os jovens para serem bons profissionais, isto é, submissos, mas ambiciosos, e passe a representar uma arena de idéias democráticas, de fato. Neste sentido, é preciso repensar seriamente a função da escola e seu papel na sociedade se queremos criar as condições para atingirmos níveis mais avançados de sociabilidade e edificar um caminho de emancipação humana. Esse caminho passa necessariamente pela identificação do lócus do ensino-aprendizagem atuais, que privilegia as relações mercantis e que precisa ser questionado. Esse é um componente que não pode, de forma alguma, ser negligenciado na formação dos professores de sociologia.

Educar para cidadania, com os instrumentos burgueses, equivale a lutar por um mundo cada vez mais livre, justo e humano, e isso só pode se dar quando o estudante é livre para fazer escolhas e recebe a devida formação sociológica que lhe permita tomar consciência dos direitos e deveres inerentes a uma sociedade democrática; que desenvolvam uma postura crítica diante dos problemas sociais e se engajem na sua solução; que tenham uma participação ativa e consciente na condução dos negócios públicos. Educar sociologicamente, para a cidadania, é o mesmo que formar pessoas como autênticos sujeitos da história, como indivíduos capazes de construir a sua própria emancipação.

Neste sentido, caberá ao estudante no final do curso de sociologia responder qual é a emancipação que ele busca. É possível que seus anseios não sejam os mesmos dos professores e se sintam a vontade para reproduzir a ordem social atual, a violência, a dominação naturalizada. Se isso ocorrer, não é sinal que o professor falhou em sua tarefa. O espírito democrático deve prevalecer, pois a realidade social do aluno talvez o impeça de se opor à extinção da propriedade privada, do capital e de todas as categorias (trabalho assalariado, mais-valia, valor de troca, mercadoria etc).

A experiência demonstrou que a tese de Marx, sobre o surgimento e esgotamento histórico dos modos de produção, era uma lei natural a ser observada. Não é possível abolir as formas capitalistas de produção antes que elas esgotem seu papel histórico. Nessas condições, deve preponderar o compromisso com alternativas dignas para a humanidade que anseia alcançar a cidadania liberal, sem deixar que esta se torne um fim em si mesma, um instrumento burguês de dominação, e é onde deve basear-se a formação dos professores de sociologia.

Respeitadas as devidas diferenças entre cidadania e emancipação humana, a perspectiva aqui é que a primeira não se confunda com a segunda, com um “ideal”, um simples horizonte indefinido, mas, ao contrário, que sirva de instrumento para se alcançar aquela. Embora estruturada pelo capital – que hoje tem dominado todas as instâncias da vida social –, esta perspectiva não é uma forma essencialmente limitada, parcial e alienada de liberdade e, por isso mesmo, pode servir aos propósitos do trabalho, transformando-se numa forma de sociabilidade aberta ao contínuo aperfeiçoamento. Para se alcançar esta emancipação é importante que o estudante conheça o processo histórico real, em suas dimensões universais e particulares, e considere, ele próprio, se o processo educativo se desenvolve em um mundo historicamente determinado e em situações concretas. Cabe ao professor de sociologia munir-lhe com os instrumentos para que faça seus próprios julgamentos.

De acordo com Bourdieu, as pessoas estão sempre interessadas em algo e é isso que move os homens em sociedade, e com o estudante não é diferente. Há interesses mesmo num livro que denuncia os interesses. O estudante pode entender que esses interesses não são movidos, como querem os marxistas, por uma ideologia burguesa para a dominação da massa. Pode ser que entenda que esses interesses tampouco são fruto de desejos individuais que querem se expressar em toda sua “força”, visando sua satisfação e fluidez, característicos das ditas “sociedades pós-modernas” de consumo. É possível mesmo que entenda que não é o hedonismo naif o “combustível” que move as pessoas, mas desejos complexos de aceitação no campo, disputa e dominação que estão em jogo. Podem concluir, por fim, que são os troféus dos campos e suas posições de destaque e dominância que interessam aos atores sociais, onde o jogo tem regras bem claras, mas quase nunca são expressas.

A liberdade de orientar as atividades para a construção de indivíduos efetivamente livres, não autoriza o professor de sociologia a doutrinar o estudante segundo seu próprio entendimento de mundo. O objetivo último da sociologia é de formar cidadãos críticos e ativos, e não indivíduos facilmente cooptados. É a isso que chamo de emancipação humana.

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