quarta-feira, 7 de julho de 2010

Auto-história de vida – muito mais que uma metodologia de ensino

Das muitas maneiras de se fazer com que os jovens aprendam a pensar sociologicamente, nenhuma parece ser mais efetiva e instigante do que a chamada metodologia do auto-estudo biográfico, da auto-história de vida. Essa metodologia de aprendizagem e ensino aspira fazer com que a disciplina sociologia faça maior sentido para o estudante, pois não visa abandonar as teorias sociológicas clássicas, mas, antes, tirá-las da abstração, tornando-as interessante.
Essa metodologia se aproxima, em alguma medida, daquilo que a doutrina liberal convencionou chamar de “construtivismo”, uma vez que ambas pressupõe dar voz e espaço de ação aos estudantes, incitando-lhes a desenvolver o habitus da curiosidade e do questionamento da vida cotidiana. Ambas as abordagens privilegiam a bagagem de pressupostos, motivações, intenções e conhecimentos prévios que os estudantes tragam como experiência de vida, em prejuízo de uma forma educativa predominante que conhecemos, consolidada no século XIX, e pautada na transmissão de conhecimento, numa suposta apropriação de um conjunto de conhecimentos prontos e acabados.

Se o sistema educacional tradicional estimula a abordagem superficial, pela preponderância de aulas expositivas e valorização de cobrança de informações, sem um processamento que leve à compreensão e ampliação dos conteúdos ensinados, o construtivismo e a auto-história de vida seguem na direção oposta, evitando gerar apatia nos estudantes. Tanto a primeira quanto a segunda entendem que estão fadadas ao infortúnio quaisquer metodologias de ensino baseadas em relações de poder absoluto – em que alguém que detém o conhecimento o transmite aos demais e que lhe autoriza encerrar os alunos em quatro paredes, limitando-os temporalmente no horário de aulas. Para ambas as metodologias, a compreensão da realidade torna cada vez mais premente a necessidade de transformar o ensino livresco, memorístico e pouco significativo para muitos jovens estudantes, em algo que dialogue com seus diferentes objetivos, atitudes, procedimentos, desenvolvimento intelectual, seus dilemas.

De fato, o uso de problemas do dia-a-dia como ponto de partida para a aprendizagem parece ter maiores chances de fazer com que os alunos vão além de respostas previamente estabelecidas. Estas metodologias parecem ser mais apropriadas para levar os estudantes a buscar respostas às perguntas que os inquietam, uma vez que os problemas não têm respostas prontas ou únicas. Ao contrário das metodologias tradicionais, tanto no construtivismo quanto na auto-história de vida, o processo de construção do conhecimento implica que o estudante aprende fazendo, assumindo um papel ativo na sua aprendizagem. Mas as semelhanças cessam aqui, uma vez que a metodologia da auto-história de vida se nega a atribuir aos indivíduos, isoladamente, a culpa pelos males sociais. Tampouco lhe interessa desenvolver nos estudantes habilidades e competências que interessam primordialmente ao mercado (de trabalho). À auto-história de vida não se permite jogar no tabuleiro dos interesses do capital. Ela, ao contrário, se confunde com o próprio objetivo da sociologia, que não é outro senão o desvendamento da realidade.

Se o construtivismo, particularmente aquele conjugado à prática da ABP (Aprendizagem Baseada em Problemas), preconiza uma aprendizagem calcada em problemas contextualizados na realidade, favorecendo a motivação e o estímulo para que se compreenda e se olhe criticamente para o mundo com vistas à sua transformação, o auto-estudo biográfico alude que o aluno deve utilizar-se das teorias sociológicas, aplicando-as ao seu cotidiano, “sociologizando seu olhar”, partindo de perspectivas mais amplas no tempo e no espaço, nas regularidades e nas novidades dos fenômenos sociais e culturais. Seu propósito básico é fazer com que o aluno, além de relacionar sociologia e vida cotidiana, aprenda a relacionar teorias diferentes, exatamente como fizeram os grandes criadores de teorias sociais tais como Marx, Durkheim, Mauss, Spencer, Weber.

Dessa forma, a metodologia pode permitir que o aluno, a exemplo dos clássicos, se debruce sobre a relação individuo e sociedade, sobre a dialética, a contradição, os nexos, a interdependência, a partir de sua própria realidade, suas aflições e desejos mais profundos. Com o apoio teórico necessário, o estudante poderá entender como os indivíduos criam as estruturas sociais e são por elas criados, podendo, com isso, edificar os subsídios necessários para reconstruir sua própria realidade e imaginar como esta realidade foi construída historicamente.

Encontros em congressos e artigos científicos recentes mostram que experimentos têm sido realizados utilizando o auto-estudo biográfico, e algumas técnicas têm sido desenvolvidas na tentativa de fazer com que o jovem produza discursos sobre si mesmo, sobre os saberes e sobre a sociedade da qual é parte efetiva. Essa dinâmica, que inclui, oficinas de produção de textos verbais e não-verbais, com depoimentos, discussões, cenas pessoais dramatizadas, modelagem, desenhos, fotografias, montagem de maquetes, textos sociológicos, recortes de jornais e revistas, filmes, charges, muita conversa, e tudo o mais que possa vincular o conteúdo selecionado ás teorias clássicas, parece estar trazendo bons frutos.

A prática requer o uso dos instrumentos da História Oral (depoimentos baseados em histórias de vida, entrevistas qualitativas, técnicas de pesquisa que tentam apreender os fenômenos sociais a partir da relação dos indivíduos com as estruturas sociais e vice-versa). A transposição das técnicas da História Oral para o ensino de sociologia pode ocorrer a partir de eixos temáticos, como o local de origem, família, orientação religiosa, profissão, trabalho, lazer, grupos de amigos, expectativas em relação à escola, para serem apresentados e discutidos com a turma de aula. A professora da UEL, Ileizi Fiorelli Santos, por exemplo, sugere o uso da técnica periódica do “balanço do saber”, no qual os próprios alunos elaboram um texto avaliando os processos e os produtos de sua aprendizagem, relacionando teoria e prática sociológica.

As iniciativas já realizadas de trabalho com esta metodologia de aprendizagem e prática de ensino indicam ainda que caberá ao professor, e a sua sensibilidade sociológica, identificar as condições sociais dos alunos, pensar como irá intervir na realidade deles em termos de desenvolvimento cognitivo, como irá ajudá-los a escrever e a ler melhor, além de se apropriarem dos conhecimentos sociológicos. O professor deverá utilizar fragmentos do enorme corpo teórico construído pelos clássicos, e por aqueles pensadores das Ciências Sociais que começam a se tornar clássicos, para auxiliar o aluno na compreensão dos fenômenos sociais, tanto sob uma perspectiva estrutural, na interposição entre agentes dominantes e dominados em um campo social determinado (onde são determinados a posição social dos agentes e onde se revelam, por exemplo, as figuras de “autoridade”, detentores de maior volume de capital), quanto sob a perspectiva “concreta” desses fenômenos.

Nas biografias dos alunos aparecerão, provavelmente, as migrações dos avós, dos pais; as profissões, o desemprego, as separações, enfim, elementos que precisam ser explicados na estrutura social. A idéia é que o aluno reconstrua seu próprio percurso biográfico, intelectual e profissional, mapeando suas relações com outros agentes do “campo” e seus investimentos ao longo da vida. Aqui é o momento de resgatar e articular os elementos das histórias de vida dos alunos com os problemas atuais de trabalho, desigualdades sociais, migração, desemprego, etc, provocando-os a pensar sobre sua história e a forma como está fincado na estrutura social. O importante é encontrar um jeito de lhe fazer descobrir que sua história, desde o menos provável fenômeno até o mais evidente, é produção social que, por estar naturalizado entre nós, não nos deixa ver que existem outras realidades possíveis.

A realização de pesquisas exploratórias pelos alunos no bairro, na escola, no município, no trabalho, no lazer, na igreja, entre outros espaços sociais poderá auxiliar a metodologia do auto-estudo biográfico na construção do raciocínio e da imaginação sociológica, desde que muito bem elaboradas e orientadas pelo professor, que deverá fornecer teorias, exemplos de pesquisas sobre o tema já realizadas, métodos, cronogramas, etc. A construção da aula expositiva dependerá desses elementos captados nas dinâmicas iniciais e das leituras do professor. Bourdieu chamou esse procedimento metodológico de “estudo de trajetória” (do imaginário), no qual se averigua e reconstrói a micro-história de vida do investigado, para além da classe social na qual estão inseridos os indivíduos.

Os resultados apresentados pelas experiências pioneiras com essa metodologia sugerem que é a partir das respostas dos alunos que o professor deverá preparar os temas sobre, por exemplo, a Estrutura & Sociedade, e não o contrário. Os problemas indicados pelos alunos deverão ser reelaborados à luz das teorias e apresentados aos alunos que deverão participar de dinâmicas. Essas dinâmicas devem ser pensadas no sentido de induzi-los a pensar de acordo com a lógica de pensamento dos teóricos. Dessa maneira, os alunos já vão, de forma simplificada, começando a pensar com a “cabeça” de Durkheim, Marx, Weber, Bourdieu e outros, procurando questionar, por exemplo, por que, nas sociedades de classes, pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir.

A estratégia do auto-estudo biográfico é fazer com que o aluno parta de sua própria realidade para perceber como instrumentos sociais, tais como a escola e a mídia, que aos olhos inocentes tornam-se libertadores, contribuem para manter a dominação dos dominantes sobre as classes populares, sendo representados como instrumentos de reforço das desigualdades e como reprodutores culturais, consagrando as divisões sociais. A metodologia se propõe, em suma, desenvolver subsídios para que o estudante possa questionar, não somente como se justifica a dominação de uns sobre os outros na sociedade, mas ainda, como se amenizam os conflitos, sem o uso da violência física e como os dominados participam (ingenuamente?) da construção da legitimidade imposta, aceitando as posições a eles colocadas, a pobreza e outras assimetrias sociais, acabando por ratificar uma visão arbitrária, porém dominante, de mundo.

Toda essa ambientação pode favorecer a compreensão das aulas que o professor deverá ministrar sobre dada teoria propriamente dita. Aqui, se retoma a biografia do aluno e se vai indicando a formação da consciência coletiva (Durkheim). O estudante deve perceber como ele foi sendo educado a partir de regras e valores sociais que já encontrou prontas ao nascer, desde os costumes de higiene, alimentação, relações afetivas, até os modos de se relacionar com o transcendente (Deus), de estudar, de falar, de gostar, de odiar, enfim; de tudo o que já estava ali quando ele nasceu até a gama de regras e sentimentos coletivos que se impuseram a ele de maneira irresistível, através de coações, constrangimentos, etc.

Ao final do curso de sociologia, os alunos deverão ser capazes de responder por si próprios se o fenômeno da dominação moderna, por exemplo, é algo, de fato, inocente; se os indivíduos aceitam a dominação para dominar, também eles, em outros campos da vida social, identificando-se com os próprios dominantes e ajudando a reproduzir o sistema de dominação. Fazem isso para defender seus próprios interesses em jogo? São esses interesses movidos, como querem os marxistas, por uma ideologia burguesa para a dominação da massa? Seriam eles frutos de desejos individuais que querem se expressar em toda sua “força”, visando sua satisfação e fluidez, característicos das ditas “sociedades pós-modernas” de consumo?

Este procedimento pode instigar o aluno a pensar nos problemas sociais para além dos conceitos de trabalho, modo de produção, exploração, mais-valia, mais-valia absoluta e mais-valia relativa, etc. Talvez o aluno conclua, como Weber, que os indivíduos se compõem nas diferentes esferas da sociedade, numa teia complexa e repleta de acontecimentos que são relativamente autônomos uns aos outros. O aluno pode aplicar seu próprio exemplo de vida e entender que a sociedade não é uma totalidade (nem orgânica e nem contraditória) com lógica própria e aplicável a todos os fenômenos sociais.

É possível que, ao contrário do que fizeram Durkheim e Marx, nosso estudante ache por bem dar mais importância ao individuo. Ele pode pensar a sociedade não como um bloco, mas como uma teia, em que os indivíduos agem segundo uma infinidade de valores e subjetividades continuamente reelaboradas por ele, impossibilitando as explicações totalizantes que não apreendem o fluxo das mudanças e permanências contínuas na vida social e dos indivíduos. Ele pode entender que exista um condicionamento social sobre os indivíduos, ou não. De toda forma, o importante é que esteja refletindo sociologicamente, para além do senso comum, sobre sua própria existência e questionando as dimensões da realidade imposta. Pensar sociologicamente implica em compreender o mundo para além do conhecimento cognitivo de teorias sociais. Essa compreensão deve não somente se dar por meio do olhar e do ouvir disciplinados pelo quadro teórico-conceitual, mas, fundamentalmente, pela experiência em campo.

A professora Ileizi Fiorelli Silva sugere, como exercício final do ano, que os alunos refaçam o “balanço do saber” destacando aquele ano, ou seja, “de tudo que aprenderam na escola, na família, na sociedade em geral, o que ficou de mais importante? De tudo que aprenderam em sociologia o que ficou de mais importante?” Ou ainda, solicitar que refaçam a história de vida relacionando sua biografia com a história social, com a estrutura da sociedade, ressaltando pontos que, claramente, sua história ficou condicionada pela sociedade e pontos que considera que conseguiu alterar, mudar seu “destino” em relação à sua origem social e familiar.

A professora da UEL esclarece ainda que, como a proposta é recente, não há ainda uma formulação mais teórica e sistematizada sobre ela. Além do que, as práticas podem ser criticadas e modificadas. O importante seria poder aprofundar diferentes conceitos sociológicos com os alunos e desenvolver a imaginação sociológica, qual seja, extrapolar as certezas absolutas do senso comum. Dessa forma, a quantidade de temas e conteúdos não deveria ser extensa. Levar os alunos a pensar as contradições, os nexos e as interdependências entre suas vidas e a sociedade é o objetivo final dessa metodologia. O modo como faremos isso será condicionado pela nossa ciência, pela nossa própria imaginação sociológica, que somos capazes de potencializar como professores e pelas condições dos alunos e das escolas.

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