quarta-feira, 7 de julho de 2010

O rato roubou a roupa do rei de Roma - Corrupção, uma prática velha como a humanidade

Pesquisa FAPESP


Edição 167 - Janeiro 2010 - Humanidades > Ciência Política

O rato roubou a roupa do rei de Roma - Corrupção, uma prática velha como a humanidade - Carlos Haag

Não é de hoje, tampouco é uma “honra” brasileira: já em 343 a.C. Demóstenes (384 a.C.-322 a.C.) em seu discurso sobre a falsa embaixada acusou Ésquines de corrupção e foi acusado, por sua vez, por Dinarcos de receber suborno para deixar escapar um preso político. Andócides, outro clássico, que fazia parte da equipe que negociava paz com Esparta, foi tachado de corrupto, e Lísias, um orador ático, foi denunciado como sendo capaz de defender em seus discursos, brilhantes, qualquer opinião mediante pagamento.

“A história recente mostra que a redemocratização do país tornou visíveis fatos que antes não chegavam ao conhecimento da opinião pública, mas não evitou que o fenômeno da corrupção se repetisse e há evidências de que ela está longe de ser um acontecimento marginal no interior da vida pública”, observam os organizadores (Leonardo Avritzer, Newton Bignotto e Heloísa Starling) de Corrupção: ensaios e críticas, um imenso survey sobre o fenômeno mais discutido nos tempos recentes, lançado pela Editora da UFMG (598 páginas, R$ 55) com textos de Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, Lilia Schwarcz, Evaldo Cabral de Mello, Olgária Mattos, Isabel Lustosa, Bruno Speck, entre outros. “Essa constatação povoa as páginas dos jornais, mas não gera necessariamente uma melhor compreensão da corrupção, de seus efeitos e suas raízes. À justa indignação contra aqueles responsáveis pelos atos corruptos segue-se uma condenação moral que, embora essencial, não conta de toda a complexidade do fenômeno”, alertam os coordenadores.

Afinal, observam os autores, do ponto de vista do cidadão, o país enfrenta um dilema no combate à corrupção: quanto mais é combatida, mais ela é noticiada, e quanto mais ela é noticiada, maior é a sua percepção. “Do ponto de vista do cidadão, o combate à corrupção gera a aparência de uma maior presença desta na vida administrativa do Brasil.” O perigo é de se continuar a ver sempre na vida nacional um “mar de lama”. Outro perigo é enxergar esse mar apenas no Brasil. “A explicação tautológica de que o Brasil é corrupto em razão de sua identidade quase prescinde de refletir teoricamente e estudar empiricamente o fenômeno da corrupção. Não deixa de ser, apesar da crítica aparente, uma forma de se conformar à sua realidade. Por essa visão, o país seria inevitável e definitivamente corrupto devido a certos valores e práticas que, presentes desde a origem, tornaram-se parte de seu caráter. Essa explicação, além de preconceituosa, essencializa a história e simplifica ao atribuir uma sobrecarga explicativa à cultura em detrimento de suas articulações variadas com outras dimensões da vida social”, analisam os organizadores. “A organização Transparência Internacional, hoje, assegura que em todos os países pesquisados não há um só em que se possa registrar a ausência do fenômeno da corrupção. Países ricos como os EUA, a França, a Alemanha ou a Argentina comparecem nas listas em que se verifica a rotina do suborno, que é a forma de corrupção mais disseminada no mundo, uma prática de mão dupla: os países sofrem internamente, mas também promovem externamente em seus negócios com outros países”, lembra o cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Wanderley Guilherme dos Santos.

Partindo do famoso aforismo, poderíamos criar outras derivações como: ‘Se o poder oligárquico corrompe oligarquicamente, o poder democrático corrompe democraticamente’. A democracia oferece, comparada a outros sistemas políticos, uma multiplicidade de meios para a corrupção, pelo número de transações entre pessoas privadas e poderes públicos que estimula e, normalmente, pelo volume dos recursos a serem distribuídos mediante a deliberação coletiva. Comparada às ordens absolutistas e oligárquicas, a democracia seria, em princípio, o mais vulnerável dos sistemas políticos conhecidos”, analisa. Em comparação com os sistemas anteriores, num Estado democrático moderno, é bastante elevada a quantidade de postos de poder público cuja ocupação é submetida à escolha de um eleitorado universalizado, observa o cientista político. Assim, a sociedade não teria tanto o que reclamar sobre a corrupção, já que estaria responsável por essa distribuição do poder. “Transfere-se para a sociedade os atributos do poder absolutista e na mesma extensão em que se distribui o poder distribuem-se as oportunidades de corrupção nele implícitas. Por isso, a corrupção democrática identifica a face deteriorada do direito de participação popular na constituição e exercício do poder político tal como Aristóteles havia antecipado”, avalia Wanderley dos Santos.

Há outras formas de entender esse fenômeno. “Alessandro Sartori afirma que toda decisão política produz riscos externos que afetam aqueles obrigados a consumir a decisão da qual não participaram: riscos de tirania, incompetência e corrupção. Logo, a corrupção é um dos riscos externos que pode afetar negativamente a operação e os resultados dos sistemas políticos. Mas, se há corrupção, que haja escândalos, pois dar publicidade à corrupção é sinal de robustez, e não de fragilidade do sistema político”, observa a cientista política Fátima Anastasia da UFMG. E no Brasil, como se observa esse movimento? “A corrupção brasileira é antiga e mutante: a corrupção de hoje não é a mesma de há 100 anos ou, melhor, mudou o sentido da corrupção nacional. As acusações de corrupção dirigidas ao Império e à Primeira República não se referiam a pessoas, mas principalmente ao sistema. Não se chamava d. Pedro II de corrupto, de presidir uma administração corrupta, ou, em 1930, quando os revolucionários chamavam os políticos da República Velha de carcomidos não queriam dizer que eram ladrões. Corruptos eram os sistemas porque não promoviam o bem público”, explica o historiador José Murilo de Carvalho. Foi a partir de 1945 que houve uma alteração semântica na acusação de corrupção. “A oposição a Vargas, comandada pelos políticos da UDN, voltou suas baterias contra a corrupção individual, contra a falta de moralidade das pessoas. Nessa chave, corruptos eram os indivíduos, porque roubavam dinheiro público para enriquecer a si mesmos e a seus amigos. Postura semelhante presidiu à justificativa do golpe de 1964, feito, como se alegou, contra subversivos e corruptos”, lembra. O discurso atual é herdeiro desse discurso udenista, presente hoje na grita contra mensaleiros e outros predadores da coisa pública, lembra o historiador. Ao final do governo Sarney, o grito de guerra de Collor, que o levou à Presidência, foi também a caça a pessoas, aos marajás.

Mas, no debate atual sobre corrupção, está também presente um ingrediente sistêmico de caráter ideológico, análogo ao do Império e da Primeira República. A reação mais lúcida à corrupção envolve, sim, o comportamento individual, mas o enquadra em perspectiva política sistêmica, não moralista. Para essa posição, a corrupção seria inaceitável por minar a própria essência do sistema democrático-representativo, a busca do bom governo como gestão correta, eficiente e honesta do bem público”, nota José Murilo. “Para outros, essa crítica seria apenas udenismo e a visão de um bom governo seria um instrumento de promoção da igualdade, sem maior preocupação com a correção dos meios adotados.”

O perigo ético que decorre disso é latente, mas intenso. “Daí os políticos de esquerda parecem se sentir mais injustiçados quando seus eleitores manifestam mais indignação diante das notícias de corrupção em seus partidos do que diante da corrupção entre os conservadores. Não há razão para espanto. As grandes decepções são diretamente proporcionais às grandes esperanças”, observa a psicanalista Maria Rita Kehl. “Quando se revela que um político eleito a partir de compromissos com interesses populares agiu em interesse próprio a sociedade fica desnorteada, há uma fratura no campo simbólico e a indignação no campo simbólico pode rapidamente descambar em autorização cínica para a falta de ética generalizada, em todos os níveis: ‘ou restaura-se a moralidade...’”, avalia Maria Rita. Se os governantes, que ocupam o lugar simbólico do pai, colocam-se acima da lei, a violência tende a se disseminar por toda a sociedade. “No Brasil, em 2005, a ‘crise do mensalão’ mobilizou contra o governo do PT sentimentos de desilusão e revolta mais dramáticos do que contra outros partidos que tenham se revelado corruptos, já que o PT se elegera sob a bandeira da transparência”, analisa. Segundo a pesquisadora, é compreensível que quando o governo eleito em nome da esperança e da transformação se revela como os outros o cinismo suceda a decepção e a perplexidade iniciais e a ação política se desmoralize. Nasce, então, o ressentimento.

“O cidadão que se imagina puro, mas admite com amargo realismo a corrupção mascara sua cumplicidade e age como a vestal que se queixa de ter sido a vítima passiva de seu sedutor. Ele negociou, inadvertidamente, seus interesses de classe na esperança de que o caixa dois viesse um dia a beneficiá-lo. O ressentimento é o ponto de encontro entre essas duas correntes psíquicas: a cumplicidade inconsciente com o agravo; de outro, a frustração por não ter se beneficiado dela. O avesso do ressentimento seria a retomada do sentido da ação política.” Disso decorre certo desafogo da classe política, porque a corrupção não seria um privilégio dos políticos, mas estaria espalhada pela população em geral. Mas se engana quem quer ver nessa malandragem um traço impresso no nosso DNA cultural, como já se alertou anteriormente. De onde ele viria, então? “A malandragem é um subproduto que a modernização recebe e tenderá a se evidenciar quão mais perversa ela se mostrar, como é o caso brasileiro, e quão mais distante estiver a sociedade civil de seu controle. Nesse sentido, a malandragem não é outra coisa, mas uma resposta apolítica às fissuras deixadas pela ideologia moderna em sua tarefa de moldar a sociedade”, explica o sociólogo Venceslau Alves de Souza, autor do doutorado Malandragem e cidadania, defendido na PUC/SP sob orientação de Vera Chaia. Segundo ele, em qualquer ambiente social de modernização nefanda, seja aqui, seja em partes dos EUA, seja no México, a causa comum da malandragem é a precarização das condições de vida dos trabalhadores e o surgimento da corrupção do “jeitinho”, independentemente das características físicas, psíquicas ou da raiz de onde se origina este ou aquele povo, mas resulta da ideologia que permeia e configura dada sociedade. Logo, descarta-se a tese de um DNA nacional da corrupção.

Houve entre nós, por um longo período, uma resistência dos segmentos mandões em admitir um modelo de dominação fundado na igualdade de oportunidades e condições afastando qualquer possibilidade de mudança social, o que será determinante para o surgimento da figura do malandro. Acostumados a mandar incondicionalmente, os mandões não se reconhecerão no modelo regulador e classificatório moderno, achando difícil assimilar a noção de direitos e igualdade”, observa o pesquisador. Isso, continua, desestimula as classes baixas a acolher esses imperativos, e assim a tradição venceu a modernidade. “Nesse sentido, os mandões se transformavam e transformavam em malandros os indivíduos que mantinham sob controle, pois a malandragem não é outra coisa que um fenômeno que se nega a reconhecer a legitimidade da ordem moderna, procurando agir ao largo de suas instituições, ainda que numa espécie de dialética da ordem e da desordem. O que se reproduzirá por longa data será uma massa humana que parece querer se esquivar da racionalidade moderna sempre que pode. Ao serem impedidos de competir em pé de igualdade desde que nascem, os indivíduos são levados a crer que há sempre um ‘jeitinho’ para se amolecer a rigidez da hierarquia social e levar vantagem, dando-se bem”, analisa o pesquisador. É daí que o habitus malandro passa a valer para os mais variados segmentos sociais, uma busca incessante do capital cultural diferencial que autoriza todas as classes sociais a usar a ginga sempre que necessário. Não é por outra razão que as próprias classes médias, em geral moralistas, usarão os recursos da malandragem sempre que indispensáveis. A resposta, como ao político corrupto, é a mesma: “É ele que acaba ditando o ritmo geral aos indivíduos moralmente precarizados do lado periférico do mundo moderno, e que somente um choque radical de cidadania irá afungentar”.

A dimensão da concepção minimalista de democracia e o contratualismo que precede Rousseau

No contexto da Teoria Democrática Contemporanea, vou discorrer brevemente sobre os valores que permeiam a concepção minimalista de democracia. Vou sustentar que os teóricos da democracia mínima recorrem ao argumento contratualista moderno anterior a Rousseau, que concebe a liberdade a partir de um prisma individualista e não-igualitário, para fazer valer seus argumentos. Procurarei blindar minha crítica à esta concepçaõ com argumentos de tendências neo-republicanistas, sustentando que qualquer teoria democrática que advenha de uma compreensão da democracia como um mecanismo e não como um ideal, é insatisfatória, pois incorre em ‘erro de origem’. Sustento que o conceito de democracia não pode ficar restrito ao espectro político, pois contamina todos os aspectos da vida social, através do ativismo da sociedade civil e dos movimentos sociais.

Na perspectiva desse texto, democracia boa não é aquela ‘bem comportada’, estruturada sob uma visão burocratizada e restrita da vida política, que não deixa espaços à elasticização da participação política, mas aquela que pressiona a doutrina liberal a compatibilizar liberdade e igualdade, transformando-as em valores complementares, e não antitéticos.

Mas na origem da concepçaõ minimalista de democracia parece assentar exatamente o contrário. É sob a tutela do pensamento de Max Weber que ela se dá, cuja noção de democracia se restringia ao direito das massas ao voto, e de uma elite, eleita por aquelas, para exercer o poder político.

Para chegar a essa conclusão, Weber se vale do discurso contratualista moderno, onde se busca atingir a liberdade individual, relegando a igualdade à abstração. Weber acredita que os indivíduos que comporiam o parlamento deveriam formar um grupo de políticos profissionais selecionados sob critérios racionais. Deveria ser uma elite distinta que, como burocratas, legislasse em nome de todo o povo, já que via como estúpido o cidadão médio, despreparado para tratar de assuntos públicos.

Na base do argumento de Weber – e posteriormente de Schumpeter – está o argumento do contratualismo que antecede Rousseau. Nele, concebe-se a liberdade a partir de um prisma individualista, mas não igualitário. Esse contrato assegurava a todos o direito de ser livres, mas só podia alcançar essa liberdade os que eram economicamente fortes. No pensamento de Max Weber, a democracia era um mecanismo de ‘livre escolha individual’ dos líderes e de competição eleitoral pelo voto do cidadão, um mecanismo institucional de seleção de políticos competentes e capacitados. Para ele a democracia seria uma seleção natural de líderes competentes para a formação do parlamento. O povo ficaria restrito à escolha dos seus representantes retirados de um grupo elitista de políticos profissionais, cujo processo seria garantido pelo aparelho burocrático do Estado. Este seria o instrumento pelo qual a garantia da ordem liberal e da democracia seria efetivada, evitando assim que determinados grupos ou facções se perpetuem no poder político. O parlamento, por sua vez, deveria ser o órgão responsável pelas decisões políticas da sociedade e do Estado.

O minimalismo procurava mostrar ser incompatível o argumento contratualista de liberdade com os ideais igualitários, defendidos por Rousseau. Para Weber, a realização plena da liberdade não podia se dar sem limitar fortemente a igualdade entre os homens. Os cidadãos escolheriam livremente os melhores candidatos para o parlamento e nisso se resumia a compreensão weberiana de democracia. Daí porque não se permite extravasar de um argumento eminentemente político para uma discussão em torno de princípios de justiça, ampliando o alcance original do argumento.

Quando Schumpeter contesta a vontade geral como sendo o substrato das vontades dos indivíduos (Rousseau, 1997), argumentando que estas podem ser as mais diversas possíveis, com vistas a desacreditar a teoria clássica da democracia, fundada na igualdade entre os homens, ele não faz outra coisa que seguir os passos de Weber. A democracia como método real e aplicável deveria excetuar a tirania da maioria e restringir a participação política dos cidadãos apenas ao aspecto de escolha de seus líderes.

Estes viriam de escalões da elite política, os políticos profissionais, que, como o empresário no mercado tenta maximizar suas ações para obter maiores lucros, deveriam utilizar todos os recursos para a obtenção da maioria dos votos dos cidadãos numa competição livre por tais votos. Os políticos estariam inseridos em partidos que têm como principal objetivo chegar ao poder ou manter-se nele (Shumpeter, 1984). Obtendo êxito na disputa, o político vitorioso assumiria o poder onde permaneceria até as próximas eleições.

Mostra que o conceito de democracia não pode ficar restrito ao espectro político, contaminando todos os aspectos da vida social, através do ativismo da sociedade civil e dos movimentos sociais. Schumpeter (1984) segue na mesma linha de Weber, acreditando na racionalização da democracia e restringindo-a ao direito de votar do cidadão, e de ser votado, de uma elite.

A defesa do neoliberalismo em Veja; por que a revista age como age?

Neste artigo, verificamos o comportamento ideológico de um veículo de comunicação específico, a revista VEJA, em cinco anos de cobertura (1997-2001) de pautas voltadas ao que chamamos de ‘capitalismo desorganizado’. Além de levantar detalhes no seio de seu discurso que possibilitam-nos caracterizar a revista como instrumento de controle político, ou, para usar um termo de Althusser, “aparelho privado de hegemonia” – neste caso, de hegemonia do capitalismo desorganizado – no período citado, produzimos aqui uma análise crítica dos possíveis motivos que levaram o semanário a agir como tal.

Não se trata de verificar exatamente como a revista VEJA criou condições para a implantação de medidas liberais radicais no Brasil , haja vista a necessidade de abertura radical dos mercados já ser debatida na grande imprensa nacional desde início dos anos 80. Trata-se sim de analisar as possíveis causas de sua aversão à regulação social e sua lida em não permitir que a crença na infalibilidade do mercado se esvaziasse, procurando estabelecer neste pormenor um certo hábitus.

Segundo Pierre Bourdieu, o conceito de hábitus refere-se a “um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e reguladas’ sem que isso seja o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha a necessidade da projeção consciente deste fim, ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro”. O hábitus pode, pois, ser representado por um conjunto de características que são internalizadas ou interiorizadas desde a infância, através da família, da escola e das experiências sociais de pessoas ou grupos, na forma de hábitos, maneiras de agir, disposições ou percepções, e que os levam a organizar, de forma "natural" e muitas vezes inconsciente, sua conduta e suas escolhas.

O poder de VEJA de criar tal hábitus, acrescido da importância político-econômica do semanário e da suposta erudição que sua volumosa circulação lhe proporciona, é o motivo maior pelo qual escolhemos essa publicação como foco de estudo e não outros veículos de comunicação – que são, igualmente, partes da mídia e do mercado, e cujas atitudes são intrínsecas ao processo de produção e acumulação capitalistas contemporâneo.

Parte-se aqui da perspectiva de que, a partir do marco inicial de nossa análise, 1997, o pensamento liberal radical, então hegemônico e teórico do neoliberalismo, já não conseguia dissimular sua indiferença com questões sociais – período este em que fica-se com a impressão de que "as grandes lutas contra a desigualdade social terminaram" (TOURAINE, 21/07/2002) . Aliado às crises cíclicas que passariam a fazer parte das economias de várias nações que se atrelaram aos dogmas neoliberais, o período 1997-2001, entendemos, marca o início de uma crise da própria hegemonia desta doutrina, ineficazmente dissimulada pelos meios de comunicação em geral.

Cabe aqui ressaltar que, no Brasil, em oito anos de implantação efetiva de medidas radicalmente liberalizantes pelo Partido Social Democrata Brasileiro, houve uma extraordinária concentração de riqueza e renda em um período marcado por uma das mais baixas taxas de crescimento econômico da história do País. A implantação de tais medidas, como conseqüência, deixou o Brasil menos justo e menos desenvolvido que o resto do mundo. Para ilustrar, enquanto a renda mundial cresceu a uma taxa média anual da ordem de 3,5%, a taxa de crescimento econômico do Brasil foi inferior a 2,4% no período 1995-2002.

Fundamentamos nossa perspectiva na ocorrência real de um nervosismo mundial resultante da sucessão de crises econômicas por que passaram vários países a partir de 1997 – Rússia, México e os chamados 'Tigres Asiáticos', seguidos por Brasil e Argentina – que aderiram ao “receituário neoliberal” e por conta da recessão nos EUA. Naquele período, a América Latina já dava indícios de crise de instabilidade econômica que poderiam desembocar em instabilidade política. A mudança mais importante a partir daquele ano foi a perda do otimismo histórico sobre as perspectivas oferecidas pela combinação do tripé democracia política, reformas econômicas e integração regional, que caracterizara o continente na primeira metade da década de 90.

Até aquele momento, capitais externos chegavam em abundância e sem delonga; houve em conseqüência um surto de crescimento econômico e a pobreza ameaçava diminuir. No início de 1998, contudo, o crescimento econômico da região latino-americana não havia passado de 3,3% ao ano, na média, do que resultou um aumento de somente 1,5% na renda per capita, igualmente na média anual. Paralelamente, a desigualdade, a informalidade e o desemprego mantinham-se, na melhor das hipóteses, iguais. Não obstante a inflação – o grande mal que assolara a América Latina nas décadas de 70 e 80 – tivesse sido aparentemente domada ou controlada, esse avanço, sobretudo do ponto de vista social, não significou a abertura de um novo ciclo realmente virtuoso na região.

Nossa premissa maior aqui é a de que o êxito da empreitada liberal radical foi grandemente possibilitada pelo concurso de um poderoso instrumento de prática democrática que acabou tornando-se um mecanismo de obscurecimento social, a mídia. Esse instrumento foi capaz de desviar a atenção de possíveis focos de resistência ao neoliberalismo. Tal obnubilação coletiva contou com a contribuição imprescindível da indústria cultural, particularmente da revista VEJA, que modelava a ilusão da realidade conveniente, encarregando-se de tornar digerível à população as teses do liberalismo radical.

Partimos ainda, complementarmente, da premissa menor de que o discurso de VEJA – de que nenhum país se pode desenvolver seriamente sem uma economia de mercado radicalizada, que priorize a fragmentação, a divisão – induz à criação de um sentimento permanentemente favorável à competição, transformando essa competição em imperativo natural da sociedade, capaz mesmo de moldar o próprio capital cultural de todo um povo.

Ambas premissas decorem do silogismo de que a retórica da revista VEJA contribui negativamente na perda do sentido do “bem comum”. Em decorrência dos pressupostos acima expostos, nossa questão central é a seguinte: se a revista verdadeiramente funcionou como aparelho privado de hegemonia do capitalismo desorganizado, como seu discurso reagiu à crise de confiança em tal modelo a partir de 1997?

Analisamos, até como forma de escapar à sistematização funcionalista, o comportamento da revista VEJA inserindo-a na dinâmica das mudanças sociais que caracterizam a fugacidade dos agentes sociais nas sociedades pós-modernas. Em outras palavras, tentamos compreendê-la não como agente estático – satanicamente a serviço das classes dominantes –, mas como agente dinâmico, que procura transformar o contexto social de acordo com seus propósitos imediatos e de longo prazo, dentro de uma lógica pós-moderna. De forma a dar sustentação a nossa tentativa de caracterizar o discurso da revista VEJA como importante instrumento ideológico de hegemonia do capitalismo desorganizado no Brasil – e procurando entender a lógica que faz o semanário agir como tal – partimos, simultaneamente, para a análise crítica dos dados propriamente ditos; prática pouco comum aos artigos científicos.

A VEJA REVISTA E O GRUPO ABRIL

"Para nós, espectadores de olhar ingênuo, o que nas páginas de Veja se dá a ver é antes um extraordinário jogo de formas e cores, uma espécie de álbum fotográfico inesgotavelmente renovado a ser folheado como tal." - Eric Landowsky

Por que a revista VEJA merece tanta erudição? Dentre os muitos setores nacionais da grande imprensa que melhor têm doutrinado os valores do livre-mercado no país, o semanário da Editora Abril destaca-se a revista VEJA . Esta publicação procura responder a uma demanda de informações cada vez mais complexas e especializadas. Exatamente por esta razão, tratamos a revista VEJA como um 'meio de comunicação' ao invés de 'grande imprensa'. Nossa intenção é fazer uma justa distinção entre o caráter do semanário e a imprensa diária. VEJA oferece seções que vão da política ao esoterismo, das descobertas científicas aos fatos culturais, da moda aos avanços da medicina, passando por seções especializadas em informática, culinária, literatura, ciências, moda, comportamento etc, o que, do ponto de vista cultural, faz o ecletismo de seus leitores.

O motivo de atribuirmos a revista VEJA tanta, não exatamente erudição, mas importância, reside também em outros vieses. Produzida pela Editora Abril, VEJA não somente faz parte do Grupo Abril, um dos maiores conglomerados de comunicação da América Latina, que atua de forma integrada em várias mídias, mas é ainda o semanário mais comprado no País e um dos mais lidos no mundo. No Brasil, raramente um jornal ultrapassa a casa de l milhão de exemplares; só a semanal VEJA consegue isso, com uma circulação paga de 1,2 milhões – a quarta maior circulação do planeta e terceira maior em páginas de publicidade.

Além disso, o mais importante semanário da Editora Abril é também o mais articulado. A importância da revista hoje é tamanha a ponto de lhe permitir criar pautas para outros veículos de comunicação que querem saber não somente o que VEJA trará na próxima capa, mas sobre os conteúdos de suas matérias.

Por fim e mais importante para este trabalho, os leitores dessa publicação – que é dirigida às classes médias e que transmite valores radicalmente liberais por meio do eufemismo de “livre iniciativa” – são uma elite de formadores de opinião: têm um grau de escolaridade acima da média do País e a revista parece buscar influenciá-los na tomada de decisões, como mostra a declaração abaixo, de Roberto Civita, sobre a visão de mundo não somente de VEJA como da Editora Abril como um todo:



“A Abril vem se batendo há 30 ou 40 anos pelo caminho da economia de mercado, da abertura de fronteiras, da globalização da livre iniciativa. O papel da imprensa não é ir trabalhar nos bastidores nem chegar ao ministro X e pressioná-lo; mas, sim, colocar as coisas para o leitor, tentando mudar a cabeça das pessoas nas suas páginas e não nos gabinetes.”



BREVE HISTÓRICO DE VEJA

Fundado em 1950 pelo norte-americano Victor Civita como Editora Abril, o Grupo Abril representa uma elite que é a própria materialização da crença de que a mídia e o Poder andam de mãos dadas. Desde sua criação, o Grupo tem estado presente nas principais transformações da sociedade brasileira. Ainda que de 1968 a 1975, o AI-5, contrário às idéias ‘subversivas’ da revista VEJA, tenha censurado o semanário, o Grupo Abril manteve sempre relações umbilicais com o Poder. Personalidades políticas das mais variadas facções disputam espaço nas páginas de suas publicações, sobretudo de VEJA. Esta aparição pode representar um trampolim político a cargos mais elevados ou à aquisição estratégica de status. Ao longo dos anos, esta relação tem premiado o Grupo Abril, mais particularmente à revista VEJA, com um prestígio raro na cena nacional. Aí reside um dos motivos de atribuirmos tanta importância a este semanário.

Em abril de 1976, após mais de um ano do fim da censura da revista VEJA, o semanário atingia a marca de 180 mil exemplares vendidos por edição; mais que o dobro de sua atuação inicial em 1968, quando foi criada. Exatamente um ano mais tarde, pulou ao recorde histórico em tiragem: 700 mil exemplares semanais e 2.8 milhões de leitores. Tal fato levou o Grupo abril a diversificar seu leque de produção de revistas; em 1990, o grupo publicava um número superior a 200.

A demanda por produtos da Editora Abril demandava, por outro lado, mão-de-obra para supri-la. Nesse período, o Grupo Abril empregava aproximadamente 15 mil pessoas em seus quadros e, em 2000, somente a Editora Abril, dava emprego à cerca de 8 mil pessoas. Nesse período, o Grupo Abril agigantara suas atividades: produzia e distribuía revistas, livros didáticos, conteúdo e serviços on-line, Internet em banda larga, TV por assinatura, livros, vídeos, fascículos e database marketing. Líder no mercado editorial latino-americano, a Editora Abril é responsável por 64% da receita líquida do grupo; publica 233 títulos e chega a 30 milhões de leitores. Somente em 2000, imprimiu cerca 385 milhões de revistas em cujas páginas foram veiculadas mais de 47.700 páginas de anúncio. A revista VEJA, contudo, continua sendo o carro-chefe da editora.

Em Portugal, a Editora Abril participa, juntamente com o grupo Controljornal – o maior empreendimento de mídia português – e a editora de origem suíça Edipresse, propriedade da empresa Abril Controljornal/Edipresse – que se transformou na maior editora de Portugal – com 26 títulos e 80 milhões de exemplares vendidos em 2000. Principal produto do Grupo Abril, as revistas representam 64% dos negócios do Grupo. Em 2000, eram 233 títulos de revistas por ano, que venderam 224 milhões de exemplares e 4,6 milhões de assinaturas, ou seja, mais de dois terços de toda a base de assinaturas do Brasil.

A atuação do Grupo Abril vai, contudo, muito além do ramo de comunicações. Ele cuida do licenciamento das marcas do Grupo para uso em diversos produtos. Até 2000, a Abril já tinha licenciado doze marcas em 800 itens, para 30 empresas licenciadas, totalizando 1,3 milhão de produtos vendidos. Das marcas e produtos licenciados pelo grupo consta toda sorte de produtos, como as revistas EXAME, VIP, VOCÊ S.A., INFO, CAPRICHO, QUATRO RODAS, PLACAR, TERRA, VEJA, BONS FLUIDOS, RECREIO, AS MELHORES EMPRESAS PARA SE TRABALHAR; os seguintes produtos: Lingeries, linha de material escolar e papelaria, livros, linha office, objetos de decoração, jogos cartonados, quebra-cabeças, modelos colecionáveis de automóveis de metal etc; e como parceiros e associados, Lupo, Hopi Hari, Tilibra, Imaginarium, Marcyn, Grow, Feng Shui, Nobel, Pejou, Mindquest e Califórina Toys, Cosmopolitan/Hearst, Hachette, Carlos Civita, Gruner und. Jahr, Playboy Intl., Editora Perfil, Controljornal, Edipresse, Disney, Chase, Helman & Friedman, Bell Canada Intl., Folha de S. Paulo, Marvel, DC Comics, Viacom, Vivendi.

PRIMEIRA ANÁLISE

Parte de tamanho império, não causa estranheza que VEJA reproduza a filosofia do grupo do qual faz parte, ou seja, a defesa de um modelo de sociedade onde se privilegie a iniciativa privada e o lucro como lei natural, capaz de animar a economia e distribuir a riqueza do mundo. Para além do viés mercadológico, contudo, a revista tem se esforçado para explicar aos seus leitores que o mundo contemporâneo, ‘moderno’, é uma região dividida. Há os bons, favoráveis às iniciativas do livre-mercado em todas as suas nuances: privatização, consumo, etc, e os maus, grupos isolados de fracassomaníacos que insistem em apontar a miséria, a desigualdade social, etc como subprodutos do sistema capitalista de produção. No interior de suas páginas, a revista abriga mais que a defesa aberta do modelo político-econômico liberal, conforme verificamos em matéria do caderno ‘Economia e Negócios’ da edição de número 1499 de 04 de junho de 1997 (todos os grifos são nossos):

Os EUA quebram um tabu

Os americanos provam que é possível

combinar crescimento forte com estabilidade econômica

Eurípedes Alcântara, de Nova York



Se havia ainda alguma dúvida de que a economia americana passa pelo melhor momento de sua história, ela acabou na semana passada. Na quarta-feira, foi divulgado o índice de confiança do consumidor, considerado um indicador quase infalível da avaliação que os americanos fazem da solidez do seu emprego e da evolução do ambiente econômico do país. O resultado é o melhor dos últimos trinta anos. Ele vem se somar a outros números excelentes. A inflação praticamente desapareceu, o desemprego é o mais baixo em décadas, a bolsa de valores atingiu o índice 7300, que só se esperava para daqui a alguns anos, e o país lidera a grande revolução tecnológica mundial. "A maioria dos americanos acha que já está bom e vai ficar melhor ainda", diz Allen Sinai, veterano economista de Wall Street, conhecido até bem pouco tempo atrás por suas previsões pouco otimistas.

Este é o melhor momento econômico dos Estados Unidos e muito provavelmente de toda a história do capitalismo.

Observe-se que, ainda que o momento político brasileiro fosse agitado, por conta de discussão no Congresso sobre a aprovação da reeleição para cargos executivos, esta edição de VEJA, talvez numa alusão à 'mágica da economia norte-americana', optou por trazer uma capa com o mágico americano David Copperfield. Até este momento, 1997, o modelo de capitalismo desorganizado mostrara-se bastante atrativo, o que fez governos ditos social-democratas enveredar por esse caminho. Salvo exceções, como no caso do México em 1994, os demais países que aderiram à doutrina pareciam extrair resultados positivos desta opção. Ainda que tendo por base os EUA, a maior economia do mundo, o discurso de VEJA reflete exatamente o aparente bom momento porque passava o modelo. Deixando clara sua posição favorável ao liberalismo radical, ao se referir ao capitalismo desorganizado, hegemônico então, como 'o melhor momento econômico do capitalismo', a revista sutilmente aproveita o bom momento para atacar outras fases do capitalismo, provavelmente protecionistas. Mais abaixo, o otimismo da matéria permanece irredutível:



Os imóveis estão mais valorizados, os casamentos mais duradouros e os centros das grandes cidades, antes decadentes, voltam a ostentar o esplendor urbano e comercial do passado.

(...) Hoje, os nipônicos compram em títulos do Tesouro americano quatro vezes mais do que lucram vendendo automóveis nos Estados Unidos. "Onde foi que acertamos?", perguntou a revista Time, num artigo recente. Boa questão.

A atual euforia econômica americana é o resultado de um conjunto de acertos.

Ela culmina uma década de ajustes amargos feitos pelas empresas, que cortaram custos congelando salários e demitindo em massa, combinados com uma inesperada sabedoria fiscal do governo. Há dias, num acordo histórico, um presidente democrata, Bill Clinton, acertou-se com um Congresso republicano para produzirem uma lei que obriga o governo a não gastar mais do que arrecada a partir do ano 2002. A euforia também premia um país cujas exportações foram impulsionadas pela fraqueza do dólar e que soube abrir agressivamente novos mercados nas nações liberadas do comunismo.

O otimismo do semanário na defesa do neoliberalismo é tão acentuado nesta passagem que a revista chega a atribuir fenômenos como o de maior durabilidade dos casamentos ao “sucesso” da suposta política-econômica liberalizante dos EUA. Não há uma preocupação na matéria em estabelecer uma relação entre os dois fenômenos; se é que ela existe. “Deve-se salientar”, Sugere Maria Celeste Mira, “que nem TIME, nem VEJA nunca se propuseram a ser ideologicamente neutras. São revistas de opinião e bastante polêmicas. Mas apesar de suas premissas básicas ser a não neutralidade, fato de selecionarem e organizarem a noticia e a forma impessoal e objetiva de expor, dá a entender que o que se lê é uma opinião isenta ou uma avaliação neutra dos fatos. Obviamente, toda informação é produzida e tende a refletir o ponto de vista hegemônico.”

A evidencia do alinhamento de VEJA com a opção radical de liberalismo aparece na valorização que a revista faz da opção dos japoneses pela especulação sobre a produção, leia-se do Capital sobre o Trabalho, ao qual a revista trata como 'conjunto de acertos' do modelo. Este conjunto de acertos, entendidos pela revista como 'amargos, mas necessários', retrata a descrença do semanário em medidas universalistas, que beneficie todos os seres sociais. O fato em si trata-se, em verdade, de uma hiper-valorização da combinação de congelamento de salários com cortes de pessoal – fenômeno altamente explorado pelo liberalismo radical, tipicamente pós-modernista – realizados pelas corporações norte-americanas, e da diminuição de ajuda governamental às empresas.

A passagem vai, contudo, além da parcialidade. Ao atribuir parte da responsabilidade de tal crescimento ao ajuste fiscal realizado pelo governo americano, ela torna-se falaciosa, pois logo em seguida admite que as medidas somente entrariam em vigor a partir de 2002. Ora, os efeitos, 'benéficos', de uma lei não podem ser retroativos à sua criação vista ter sido a matéria em questão veiculada em 1997. Para creditar o crescimento da produtividade americana ao não-intervencionismo estatal, a revista usa, na passagem de um parágrafo à outro, um tom otimista quanto ao sucesso do livre-mercado. Essa preocupação talvez tenha causado o descuido na confusão das datas. De qualquer forma, é possível inferir-se aqui que a intenção de VEJA era mostrar que o crescimento da economia seria possibilitado pela liberação radical da “mão invisível” do mercado pelo Estado, restando a este último quase que unicamente a tarefa de controlar seus próprios gastos.

Somente mais abaixo, no entanto, dirá o que realmente impulsionou a economia americana. Para o leitor desprevenido fica, contudo, a imagem do ajuste fiscal como responsável pelo bom momento da economia americana. Essa é uma estratégia muito usada por VEJA em seus discursos de defesa do liberalismo radical, conforme veremos adiante, ou seja, as matérias expõem certa crença particular e a ela, somente mais tarde, é dado suporte com um fato relacionado à tal crença, mas que não necessariamente avaliza o que foi dito anteriormente. Já no grifo abaixo,


A grande novidade é que, mesmo com todos esses sinais de prosperidade piscando no painel nacional, o Fed decidiu não aumentar os juros, em sua reunião de duas semanas atrás. Aparentemente, essa decisão é um reconhecimento de que as empresas que estão puxando a prosperidade americana são as de alta tecnologia. E estas são geridas por outra lei diferente da convencional. Seus produtos tendem a ser vendidos cada vez a preços mais baixos -- e isso é exatamente o contrário de inflação.


Não aumentar os juros significa efetivamente não ter o Estado interferindo diretamente na economia. A ênfase de VEJA de que a livre-concorrência realizou uma "queda natural” dos preços e um "controle natural” da inflação, evidencia grandemente o alinhamento da revista com o modelo liberal radical. O semanário procura atribuir o sucesso do momento econômico americano à não-interferência do Estado no mercado, pois, ainda que o Fed seja uma instituição independente, sua (não) atuação, neste episódio, não obedeceu princípios básicos de regulador da economia. A posição da revista se explicita na passagem abaixo na defesa que faz à queda e controle da inflação e do desenvolvimento tecnológico como instrumentos de desenvolvimento social, não mencionando distribuição de renda, como ocorre nas passagens abaixo:


A partir daí, no entanto, com a interligação dos computadores em rede dentro das empresas e na Internet, a produtividade deu um salto, crescendo em meses o que levou décadas para evoluir no passado. Como resultado de todos os fatores positivos, a economia americana, um colosso de 6,5 trilhões de dólares, pode chegar a dezembro tendo crescido 4% em um ano -- estimativa da qual está descontada a ligeira desaceleração esperada por todos no segundo semestre, que vai inibir um pouco o ritmo alucinante dos primeiros três meses do ano, quando o crescimento roçou a taxa dos 6%.

O fenômeno de um crescimento americano sustentado, sem inflação e, por enquanto, sem o fantasma de uma recessão corretiva à espreita logo ali na frente, é uma novidade para a economia mundial. Os países, inclusive aqueles que acham que podem sobreviver sendo apenas ligeiramente capitalistas, deveriam prestar mais atenção.



Ser "mais capitalista" pode ser lido como mais mercado – ou menos Estado –, pois, ao eleger a 'correta opção americana’ ao tradicional protecionismo europeu, a revista tenta mostrar uma espécie de 'formula do sucesso norte-americano'. Observe-se que é constante nas passagens que temos apresentado a não-preocupação do semanário da Editora Abril com quaisquer vieses de distribuição de renda planejada. Além disso, a ênfase nas virtudes do livre-mercado, auto-regulador, absoluto, permeiam o seu discurso de tal forma que chega a exaltar o esvaziamento do contrato social entre Capital, Trabalho e Estado (em favor de opção individual e da soberania do consumidor). Os grifos abaixo ratificam nossa assertiva:



Não há nada parecido no mundo, com exceção do Japão, outro fenômeno. Para produzir um PIB como o dos Estados Unidos, seria necessário juntar Alemanha, França, Itália, Inglaterra, Espanha, Holanda, Suíça e Bélgica. Quando um gigante dessa magnitude se põe a andar mais depressa, é prudente tentar saber em que direção está indo. Através da alta tecnologia, a economia americana está se alimentando de competitividade. Desde 1980, as empresas dos Estados Unidos eliminaram 43 milhões de postos de trabalho. Esse recuo apresentava-se naquela época como mais um entre os muitos sinais de decadência do império que liderou o mundo no século XX. Refeitas as contas no começo deste ano, constatou-se que no mesmo período criaram-se 71 milhões de novos empregos -- o que dá um saldo positivo de 28 milhões de colocações. São valores estonteantes. Eles mostram que os Estados Unidos criaram sete vezes mais empregos do que todos os países europeus no mesmo período.

A nova economia, por uma série de cacoetes mentais, ainda não cruzou o Atlântico. De cada dez empregos gerados na França, por exemplo, seis são oferecidos por empresas ou órgãos do governo. São cargos estáveis, quando não vitalícios, que continuam drenando recursos públicos mesmo quando já deixaram de ser produtivos. A criação e a manutenção de empregos públicos em excesso exigem sacrifícios de todos os cidadãos, que pagam na forma de impostos, de inflação -- ou de ambos.



Na defesa incondicional do neoliberalismo, a passagem, numa aparente tentativa de promover a desmontagem do Estado de bem-estar social, se esquece de mencionar que mesmo nos EUA, país considerado pela revista VEJA como o baluarte do liberalismo radical, há políticas sociais altamente compensatórias aos socialmente infortunados – aos quais em outras oportunidades, VEJA, parafraseando Milton Friedman em ‘Capitalismo e Liberdade’ , tratou como 'os que estão por baixo'. Além da política de salário-desemprego, os trabalhadores americanos de baixa renda, mesmo depois do período socialmente desfavorável de Ronald Reagan, contam com auxílios governamentais diversos, tais como o “food stamp”. Isso vale também para os trabalhadores ingleses sob o comando do trabalhista Tony Blair.

Estas medidas, em tese, equivalem às políticas de bem-estar social da Alemanha, Itália e, sobretudo da França, concebidas e estigmatizadas pela revista como 'ineficazes, ineficientes e perdulárias'. Ao citar os países europeus acima como exemplo de modelo econômico a não ser seguido, por seu caráter protecionista, inflacionário e conseqüente gerador de desemprego, a revista deixa de mencionar outros países europeus, de enorme bem-estar social, que não estão calcados em políticas radicalmente liberais, não apresentam elevadas taxas de desemprego ou inflação, como é o caso da Suécia, Dinamarca e Finlândia.

A crítica de VEJA ao Estado de bem-estar social está claramente calcada nos ensinamentos da doutrina liberal radical, sobretudo no que concerne ao 'caráter pernicioso da proteção estatal sobre a iniciativa individual'. Dentro da concepção radicalmente liberal de VEJA, o mercado é visto, como bem afirma Fonseca (2001:18), a respeito de outros elementos noticiosos, como “uma entidade infalível, e espontânea, [onde] qualquer artificialismo perturbaria sua ordem natural, dificultando ou impedindo a plena realização de seus benefícios” .

Nos grifos da passagem abaixo, constatamos que o que a revista entende ser papel do Estado é este se colocar a serviço do capital na formação do capital humano que o mercado eventualmente necessite. Ao conceber a qualificação profissional dos trabalhadores como sendo um papel do Estado, VEJA ratifica sua posição liberal radical. Segundo a compreensão de mundo da revista, como vemos na passagem abaixo, ainda que unicamente no sentido de dar suporte ao livre-mercado, o Estado deve ser forte e conservar funções relevantes:



O grande desafio do governo americano agora é formar gente capaz de ocupar essas e as novas vagas que a modernização da economia vai abrir. As estatísticas mostram que em 1979 quatro em cada dez americanos com diploma de 2o grau completo iam trabalhar na manufatura. Hoje, apenas dois vão procurar emprego em fábricas. Uma razão é óbvia: a manufatura, que já comandou 78% do PIB americano, agora responde por apenas 25%. Ou seja, há menos oferta nas fábricas. Para trabalhar no setor de serviços e nas empresas de alta tecnologia, exige-se mais do que um simples diploma de colégio. As empresas querem gente com capacitação tecnológica.

Somente certos críticos de esquerda, alguns deles no próprio governo Clinton, recusam-se a perceber o atual momento econômico como uma arrancada para todos os americanos e não apenas para os mais ricos. Robert Reich, secretário de Trabalho do governo Clinton, é um deles. Para Reich, o que houve nos EUA foi a supressão do direito dos pobres e dos trabalhadores de protestar. "Continuamos tendo 11% das famílias vivendo abaixo da linha da pobreza absoluta, e os trabalhadores ganham menos do que há dez anos", disse Reich recentemente.



Neste período, 1997, VEJA está absolutamente convicta do sucesso da hegemonia do liberalismo radical sobre os modelos intervencionistas. A revista afirma messianicamente que a economia modernizada 'vai' abrir novas vagas. Não tivesse ideologicamente tão segura do ponto de vista que defende, vista serem muito imprevisíveis as coisas da economia de mercado, o semanário poderia ter optado por um modalizador tal como “pode ser que”, o qual tem a função de trazer perspectivas, ao invés do verbo “vai”, que não deixa dúvidas sobre os acontecimentos futuros. Por outro lado, como veremos abaixo, aqueles que se manifestam antipáticos a dogmas radicalmente liberais são hostilizados e estereotipados pela revista:



Afirmações como a de Reich costumam passar sem muita discussão, até porque não há dúvida de que ainda existe muita pobreza nos Estados Unidos, e é sempre bom lembrar isso para que se faça alguma coisa em socorro dos que estão por baixo. Dessa vez, porém, Reich foi contestado. A melhor argumentação veio do economista Paul Krugman, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Krugman acha que os pobres americanos estão vivendo cada vez melhor, e por isso não reclamam. A esquerda reclama por eles porque não se conforma, na verdade, com o fato de os ricos estarem mais ricos, diz Krugman. Ele publicou um estudo em que mostra que o pobre americano vive melhor hoje do que a classe média nos anos 50. Segundo Krugman, em 1950, 35% dos lares americanos de classe média não tinham água encanada e menos da metade possuía telefone e automóvel. Uma minoria apenas tinha televisores. Atualmente, todas as casas pobres americanas dispõem de água encanada e mais de 80% possuem telefone, carro e televisão. Mesmo assim, se fosse possível viajar no tempo e oferecer a uma pessoa de classe média dos anos 50 a chance de viver numa casa pobre de hoje, mesmo sendo muito mais cômoda, certamente ela recusaria, afirma Krugman. Isso significa que as pessoas não medem seu padrão de vida em termos absolutos -- elas medem sempre seu próprio padrão comparado ao dos outros.



É fato que para garantir sua reprodução é essencial ao capitalismo fazer concessões. Tivesse permitido esse sistema que todos os trabalhadores extraíssem apenas perdas na venda da força de trabalho, o sistema em si seria suicida. Em defesa do liberalismo radical, com todos os efeitos, VEJA utiliza uma linguagem preconceituosa quando se refere aos pobres. A revista cita “os que estão por cima”, os bem sucedidos no livre-mercado, como um prêmio à sua iniciativa individual. Estes, na visão dos defensores dos dogmas radicalmente liberais, como Milton Friedman, devem criar Entidades Beneficentes que cubram relativamente eventuais infortúnios daqueles 'que estão por baixo '. Além disso, ao afirmar, com o auxílio do suporte teórico (mais uma vez) do economista Paul Krugman, que no livre-mercado os pobres não reclamam, a revista, inocentemente, deixa de trazer à baila a questão do enfraquecimento dos sindicatos pelo capitalismo desorganizado, que agravou ainda mais a correlação de forças Capital/Trabalho. Com efeito, uma eventual reclamação trabalhista poderia significar perda de trabalho, o que, na sociedade pós-moderna, por sua vez significaria perda também da dignidade, pois nela foram enfraquecidas as redes de proteção ao trabalhador.

Para entendermos melhor o comportamento de VEJA, apresentamos abaixo entrevista realizada com seu fundador, o jornalista Mino Carta.



Entrevista com o jornalista Mino Carta, editor-chefe da revista Carta Capital.

Entrevista concedida a este blogueiro em 25/02/2003



Demétrio Carta, 67 anos, nascido em Gênova, Itália, é conhecido como Mino Carta. Criador e editor chefe da revista Carta Capital, Mino Carta tem uma larga experiência na carreira jornalística. Aos 25 anos começou a dirigir a redação da revista Quatro Rodas, que se tornou um grande sucesso. Quatro anos mais tarde, foi chamado pelo jornal Estado de S. Paulo para realizar uma edição de esportes que circulava as segundas-feiras. Outro sucesso, que em 1966 deu origem ao Jornal da Tarde. De volta à Abril, a convite dos Civita no início de 1968, Mino encabeçou a criação da revista VEJA no mesmo ano. Em fevereiro de 1976 ele começou a enfrentar problemas com a censura. Era o período militar, que reprimia e calava as vozes opostas ao regime da época. “A revista estava sob censura, e o ministro da justiça pediu minha cabeça”, declara o jornalista. Demitido da Editora Abril, ele criou, ainda em 1976, a revista Isto É, e, mais tarde, o jornal A república. O segundo não sobreviveu aos muitos problemas que enfrentou. Mino saiu da Isto É em agosto de 93. Criou então a revista Carta Capital em junho de 94. O jornalista não poupa críticas ao que chama de “Donos do Poder”, uma metáfora para referir-se aos extratos sociais que têm controlado a mídia e o pensamento brasileiros nas últimas décadas. Abaixo, ele fala sobre a revista VEJA e a influência histórica do quarto semanário mais vendido do mundo nos destinos da nação brasileira.



Qual era a posição ideológica da revista VEJA quando de sua criação, em 1968? (tem havido efetivamente uma mudança de posicionamento no decorrer dos anos?)



Mino Carta: Que tem havido uma mudança é claro. Quando ela começou, ela não tinha uma posição ideológica. Ela tinha a intenção de praticar um jornalismo honesto e bem-informado. Este era o objetivo. Naturalmente, em função desta intenção inicial, que era praticar um jornalismo honesto, ela acabou tendo uma atitude crítica em relação ao Regime Militar, que naquele momento infernizava o país. Eu acho que os donos da Empresa Abril não sabiam o que estavam fazendo e, talvez Deus os perdoe por causa disso. Se tivessem pensado melhor, quem sabe, não teriam entrado naquela aventura: o lançamento de uma revista que teria necessariamente uma conotação política forte. De fato a revista, em função de seu posicionamento razoavelmente desabrido, acabou sofrendo pressões desde, praticamente, seus nascimento. A edição número cinco foi apreendida nas bancas. Outras edições foram apreendidas. Várias edições foram apreendidas até que a censura se instalou na revista em 1970, e só terminou quando eu sai da Editora Abril, no primeiro semestre de 1976. Quer dizer, a censura ficou lá seis anos abundantes. Uma censura feroz. Agora, a Editora Abril queria um empréstimo da Caixa Econômica Federal de 50.000.000 de dólares e o Regime Militar pôde exercer uma chantagem: toparia o empréstimo se a revista se atrelasse aos interesses do governo. E o único jeito de se atrelar aos interesses do Governo era se livrar de mim e mudar o discurso. Nesse momento ela passou a ser uma revista governista.





Existe a crença de que esta mudança de posição se deve, pelo menos inicialmente, ao desejo de Roberto Civita de conquistar maior influência política no cenário nacional. O que teria, efetivamente, influenciado a revista em sua mudança de posição?



Mino Carta: Roberto Civita não foi uma figura tão importante nessa primeira VEJA porque o pai dele ainda estava aí e mandava muito. O pai dele, quando eu sai da VEJA, era um homem de 69 anos e ainda em boa forma física. Roberto Civita era alguém que executava algumas tarefas, tinha poder evidentemente, por ser o escolhido do pai como sucessor, mas quem mandava ainda era o pai, enquanto eu estive lá. Roberto Civita não sabia nada de política e continua não sabendo nada de política. Roberto é um pobre diabo que afundou a empresa do pai e hoje deve 400.000.000 de dólares. Um homem que jogou fora o trabalho do pai. É isso, Roberto Civita não é nada. Ele quer poder, sim, claro, ele que poder, ele quer dinheiro, no fundo ele quer poder e quer dinheiro. Esses Senhores da mídia nativa, todos desastrados e incompetentes. Todas as nossas empresas de mídia estão quebradas, aliás, nem é preciso dizer. Por que estão quebradas? Porque esses Senhores são incompetentes. Este é um país pobre, que deveria ter uma imprensa e uma mídia em geral feita conforme o metro, a unidade de medida de seu porte, mas... eles pensam que estão em Nova Iorque. São um bando de cretinos.





A revista VEJA realmente faz apologia daquilo que se convencionou chamar “modelo neoliberal”?



Mino Carta: Eu acho que sim, pois, atualmente é o que está na moda, mas deixará de fazê-lo eventualmente porque não tardará a se atrelar aos interesses do Novo Governo. Estas publicações tentam sobreviver bajulando o Poder; atrelando-se aos interesses do Poder. De um modo geral, não estou falando do Governo Petista, pois este Governo é diferente, efetivamente, sempre no país a mídia esteve nas mãos dos Senhores que pertenciam ao Poder: Marinho, os Mesquita, o velho Frias, os Civita, etc. etc.





O Sr. diria que tal defesa, do neoliberalismo, é diretamente influenciada pela imagem de Roberto Civita?



Mino Carta: Eu acredito que Roberto Civita seja nesse momento um neoliberal convicto, assim como ele foi um grande admirador daquele senhor de cachimbo que inventou a ‘Playboy’; aquele que faz festas com as moças nuas na piscina. Segundo Roberto Civita, esse moço foi um dos grandes filósofos do século passado, uma figura central, um homem como poucos. Assim, como Roberto Civita foi um grande admirador, e acredito que ainda o seja, desse senhor, ele hoje é um neoliberal convicto. Ele casa com qualquer besteira.





Foram diferenças ideológicas entre a sua pessoa e a linha editorial da revista VEJA que o fizeram sair da Editora Abril?



Mino Carta: Não absolutamente, não é nada disso. É o contrário, eu defendia, não uma linha ideológica, mas a prática de um jornalismo justo, honesto, que contasse as coisas e que exercesse o espírito crítico. E sendo assim, era um jornalismo que se colocava automaticamente contra um Regime Ditatorial. Nós, a redação da revista VEJA, éramos a favor da democracia. Mas aos Senhores Civita isto não interessava; o que interessava era pegar o empréstimo de 50.000.000 de dólares, que acabaram pegando... e o preço era se livrar de mim...





A revista VEJA realmente fez oposição ao regime militar e foi realmente censurada (qual o grau de censura que VEJA sofreu)?



Mino Carta: A revista VEJA foi um dos poucos órgãos da imprensa brasileira que foram realmente censurados. A Folha [de São Paulo], o JB nunca foram censurados, O Globo nunca foi censurado, O Cruzeiro nunca foi censurado, a revista Manchete nunca foi censurada. Quem foi censurado: os alternativos, entre eles O Pasquim e o Movimento, por exemplo, o jornal de Dom Paulo Evaristo Arns, o São Paulo – jornal da Cúria de São Paulo – O Estadão [O Estado de S. Paulo] e o Jornal da Tarde, evidentemente, e a Veja. Estes foram os órgãos censurados. A Veja foi censurada por pouco mais de seis anos, de 1970 até abril de 1976. Em abril de 1976, quando eu saí da VEJA, a censura foi suspensa. Isso é histórico.



A mídia é também conhecida como “Quarto Poder”. O Sr. acredita que ela tenha efetivamente influenciado pró-abertura do mercado brasileiro (materializadas com a eleição de Fernando Collor de Mello e com a eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso)?



Mino Carta: O Brasil sempre dependeu do estrangeiro. No início, ele exportava matéria-prima e importava tudo o mais. Num certo momento começou a exportar também, tanto que, na época da ditadura, a balança comercial encontrava-se muito favorável e perdurou até uns dez anos atrás, quando as coisas começaram a mudar. A abertura do mercado, de importação irrestrita, foi coisa do Collor. A mídia, sim, acho que contribuiu, mas era algo que, na opinião dos “donos do país”, era conveniente para o país. Tanto que Collor, embora execrado de outros pontos de vista, foi sempre muito louvado, pelos “donos do país”, por ter aberto o país à importação, facilitando, com a queda de vários tipos de barreiras que havia até então, a entrada de produtos. Eu acho que sim; é muito provável que a mídia tenha contribuído, mas somente porque havia um interesse geral dos “donos do poder” nesse sentido.



O Sr. acredita que VEJA teve um papel importante neste processo de abertura de mercado?



Mino Carta: Talvez. Eu não sei lhe dizer ao certo o grau de influência que teve a revista VEJA, e de um modo geral a mídia brasileira, salvo honrosas e raras exceções, mas ela certamente foi a favor da eleição de Collor contra Lula. Logo...





Considerando que o governo atual distancia-se ideologicamente do que VEJA defende em seu discurso, ou pelo menos defendia, o Sr. acredita que a revista tende a manter suas posições históricas ou não? Por que?



Mino Carta: Eu acredito que não. Ela tentará jogar o jogo e, de alguma forma, sempre que possível, no Poder. Isso porque é da natureza da Abril e do Senhor Roberto Civita. Parece-me que para o bem da própria Abril, o Senhor Roberto Civita é uma estrela em queda livre. O fato é que já tem gente lá dentro mandando mais que ele. Mas não me parece que quem está mandando mais que ele é muito melhor do que ele. Acredito que tentará haver um certo entendimento com o Poder. Isso é um clássico. Eu acho que somente a Folha [de São Paulo] vai resistir numa posição claramente antagônica, fortemente crítica em relação ao governo. O resto vai maneirar, com nuanças diversas, mas somente a Folha será tinhosa nesta sua oposição ao Governo Lula. Os outros jogarão o jogo. Não excluo a possibilidade de que, no primeiro grande deslize, se houver, e eu acredito que não haverá, do Governo Petista, todos vão virar-se contra ele. Mas enquanto isso não acontecer, eles estarão todos maneirando.





De modo geral, o Brasil estaria melhor sem a revista VEJA? Por que?



Mino Carta: Eu acho que a imprensa e a mídia em geral são sempre o espelho de uma situação; as situações não acontecem por acaso. Se não existisse uma revista como a VEJA, e mais do que isso, se não houvesse no Brasil uma mentalidade jornalística como a que vigora no meio em geral, o Brasil não seria o Brasil, seria um país muito mais adiantado do que o Brasil de hoje. O Brasil de hoje tem uma manifestação muito clara, através de revistas como VEJA, Época, e da imprensa e da mídia em geral, dos seus desequilíbrios, até mesmo sociais. O povo não tem acesso à cultura, num sentido amplo, que é um patrimônio dos “donos do poder”, que fazem o que bem entendem e o que entendem é ruim para a nação. VEJA entra neste quadro; é algo que não é bom para a nação, porque é um jornalismo que pretende nivelar por baixo. É um jornalismo que pretende secundar a pretensa ignorância do nosso povo brasileiro; a ignorância, a vulgaridade. VEJA representa um esforço concentrado neste sentido.



A REVISTA VEJA SOB O PRISMA DE APARELHO

IDEOLÓGICO DE MANUTENÇÃO DA HEGEMONIA NEOLIBERAL NO PAÍS

“O vento entra... sem pedir licença”

Paulo Leminsky



É fato que um meio de comunicação, antes de ser um instrumento político e ideológico, é, na economia de mercado, um capital que visa o lucro. Para isto, precisa de mercado, de consumidores. A estratégia de VEJA – feita de muitas maneiras, desde uma propaganda mais escancarada, ostensiva, direta e imediata, até formas mais sutis: em pequenas doses e a médio ou longo prazo; pela exposição ou omissão; pela maneira como temas e personalidades são abordados; pelo ângulo das imagens; pela construção de agendas e cenários etc – para atender à sua dupla necessidade, vender-se enquanto produto e, enquanto instrumento ideológico, é a de adequar seus leitores às suas teses. Com texto padrão editorializado, ou seja, que parte do princípio da necessidade de “emitir opinião sempre”, o discurso da revista VEJA procura despertar no leitor a consciência de que tudo deve ser feito em primeiro lugar para “acalmar o mercado”, e de que soberano, é o tal “mercado”. Para o semanário, qualquer medida governamental deve ser permitida e tolerada, desde que as “regras do mercado” sejam mantidas (mesmo que em detrimento da soberania popular).

Embora a análise do discurso da mídia sempre apresente algum grau de dificuldade, dada a complexidade em detectar o que é informação e o que pode ser uma notícia dirigida a promover ou prejudicar a imagem de um determinado ator, somos privilegiados neste trabalho. No discurso de nosso objeto de estudo, em todos seus cadernos, mas com absoluta ênfase aqueles ligados a economia e a política, há uma rotineira onipresença de defesa incondicional do liberalismo radical – onde a economia aparece como sendo um sistema natural com leis invioláveis que só admitem soluções tecnicamente competentes. O fato é que nem mesmo matérias sobre novos medicamentos para controlar o peso, sobre parafernálias digitais ou sobre cursos de línguas estão isentas de tal apologia do mercado.

Textualmente determinando o que deve e o que não deve ser feito em todos os campos da vida social, o discurso do semanário, como que não havendo quaisquer possibilidades de alternativas às teses do liberalismo radical, está sempre convergindo para uma única direção e tentando levar consigo o leitor. Como que desejando reger os destinos do país, suas pautas – relacionadas aquilo que os teóricos americanos de mídia chamam de “agenda setting” (determinação da agenda) – raramente estão coladas ao interesse popular, mas predominantemente ao pensamento econômico tecnicista, único.

Enquanto parte de uma instituição privada, nascida das rédeas do desenvolvimentismo, mas crescida e sustentada nos pilares da modernidade liberal radical, VEJA realiza com perfeição sua função de aparelho privado de hegemonia deste último. O exercício de sua influência ideológica dá-se via toda sorte de reportagens dirigidas, as quais se valem de instrumentos comunicativos diversos para reforçar o seu poder de persuasão: pesquisas de opinião pública, publicidade, gráficos, ilustrações, etc. VEJA realiza tal proeza operando aquilo que Bucci chama de “usina de sonhos”, via “mecanismos silenciosos de estímulos e filtros” que induzem todos os seus jornalistas a um denominador comum ideológico. Sua função última é dizer ao leitor o que ele deve pensar. Por isso seu gênero é essencialmente editorial. Ainda que produzida basicamente para uma classe média idealizada, a revista resume-se a um pacote ideológico mesclado com matérias ‘agradáveis’, facilmente digeríveis por públicos de diferentes graus de capital cultural.

Como já dito neste trabalho, em matérias relacionadas aos gêneros política e economia, seu discurso é de absoluta apologia de modelos liberais radicais, seja aquele pensado por Friedman, seja o modelo hayekiano ou outros – de subjugação do Trabalho pelo Capital e aos quais nós resumimos aqui na expressão capitalismo desorganizado. Trata-se de um posicionamento ideológico hegemônico, de um grupo que cria as condições de produção e procura definir a história de parte significativa da sociedade brasileira (e mundial). Um posicionamento que considera qualquer apologia de intervenção estatal nas decisões econômicas como inviável ou como “coisa do passado”, exceto quando tais intervenções se dêem no sentido de assegurar lucro e proteção ao Capital Privado. Neste caso, seu discurso é de uma certa defesa das interferências do Estado nas coisas da economia. É ainda oportuno considerar que o “Estado mínimo” preconizado pelo liberalismo radical não significa necessariamente “Estado fraco”. A doutrina propugna um Estado mínimo, que permita a mobilidade do mercado, e, ao mesmo tempo, um Estado forte, no sentido de ser capaz de assegurar e fazer respeitar a “espontaneidade” das regras de mercado.

Em VEJA, fatos e políticas são geralmente lidos a partir de cenários ‘impostos’ pelo modelo vigente. A revista, enquanto materialização do pensamento do grupo que representa, encontra-se dentre os aparelhos privados de hegemonia utilizados pelos setores dominantes para que estes permaneçam nesta condição . Para tal, o semanário mais importante da Editora Abril, execra movimentos sociais substantivos, condena ações políticas reivindicatórias e desqualifica políticos que não rezem a cartilha da modernidade liberal radical. Quando parcelas da população deixam de ser espectadores e se assumem como protagonistas e construtores da própria história, como é o caso de, entre inúmeros outros casos, o Movimento dos Sem Terra no Brasil, os Movimentos Indígenas do Equador e México — como em Chiapas —, o Movimento Mundial Antiglobalização Destrutiva e Contra as Políticas de Imposição do Pensamento Único do Neoliberalismo, VEJA discursa instigatoriamente, chamando a atenção da ‘opinião pública’ contra os ‘arruaceiros de plantão’, etc, etc.

POR QUÊ A REVISTA VEJA AGE COMO AGE?



"O verdadeiro alvo visado pelos terroristas que atacaram Nova York e Washington na semana passada não foram as torres gêmeas do sul de Manhattan nem o edifício do Pentágono. O atentado foi cometido contra um sistema social e econômico que, mesmo longe da perfeição, é o mais justo e livre que a humanidade conseguiu fazer funcionar ininterruptamente até hoje. (...) Foi uma agressão perpetrada contra os mais caros e mais frágeis valores ocidentais: a democracia e a economia de mercado. (...) O que os radicais não toleram é a existência de uma sociedade em que os justos podem viver sem ser incomodados e os pobres têm possibilidades reais de atingir a prosperidade com o fruto de seu trabalho."

Editorial da seção ‘Carta ao Leitor’ da edição de número 1.178 de VEJA



Compreender as razões pelas quais VEJA defende tão veementemente pontos de vista elitistas, num país tão socialmente desigual como o Brasil, ao contrário do que possa parecer, não se trata de tarefa complicada. A citação acima, extraída de um editorial da própria revista fala por si só. Entendemos que o semanário possui uma visão de mundo que, sem constrangimentos e em detrimento da valorização das relações humanas, transita sobre a defesa de teses extremamente racionalistas e tecnicistas até desembocar na apologia de um exacerbado individualismo. A importante publicação do Grupo Abril reflete a ideologia do próprio grupo, ou seja, ela desnuda crenças e valores de uma elite nacional paradoxalmente modernizante e conservadora, emprestada de uma das versões da modernidade ocidental.

Em nossa análise de cinco anos do discurso da revista, observamos que VEJA priorizou em seu discurso, a defesa da hegemonia da modernidade liberal radical. Para tal, apoiou políticos que defendessem a privatização de empresas estatais, a abertura comercial, a desregulamentação e liberalização dos fluxos de capitais, o desmonte da legislação trabalhista e das políticas sociais, as políticas monetárias ortodoxas, comprometidos com o controle da inflação e, entre outras, que mostrassem desprezo pelas políticas macroeconômicas, de cunho social, voltadas para o crescimento da economia, conforme constatamos na matéria abaixo:



Está nas mãos dele

O Brasil está numa encruzilhada: ou faz ajustes ou enfrenta o caos

Antenor Nascimento Neto e Eliana Simonetti

30 de setembro de 1998 - número 1566



O Brasil vive um momento decisivo. Ou escapa da crise e entra no século XXI como um país moderno ou regride para seu passado de subdesenvolvimento e inflação. A escolha, em grande parte, está nas mãos de Fernando Henrique Cardoso. Sob esse ponto de vista, não existe uma terceira via para o presidente. Ele tem sido um governante com méritos reconhecidos. Em quatro anos, deu estabilidade à moeda, criou condições para a modernização da economia e recolocou o Brasil no quadro dos países com peso específico na ordem mundial. Agora está diante de uma encruzilhada de riscos. Ele pode produzir uma reforma profunda capaz de cortar a praga do déficit público. Nesse caso, tem chance de estabilizar a economia. A outra opção é produzir reformas de meia-sola, apoiadas unicamente no aumento de impostos, uma daquelas saídas manjadas que empurram os problemas para o futuro e revelam fraqueza política. A não ser para aqueles que lucram com a inflação e o atraso, essa opção é inaceitável.





O alerta inicial do subtítulo da matéria de VEJA, 'Está nas mãos dele; ou o Brasil faz ajustes ou enfrenta o caos', parece objetivar causar uma sensação de temor no leitor. A capa da mesma edição, aliás, ‘Por que o brasileiro desconfia dos políticos’ já sugere, didaticamente, ao leitor ler com atenção as recomendações do semanário. Às vésperas da eleição presidencial, o recado do semanal não poderia ser mais direto: ‘fazer ajustes’ significava em grande medida optar pelo establishment, pelo que estava posto e não por mudanças radicais, pelo 'caos'. Em outras palavras, somente Fernando Henrique Cardoso poderia representar tais ajustes, o outro candidato representava, naturalmente, o caos.

O apoio da revista ao candidato Fernando Henrique Cardoso não é, contudo, incondicional. O discurso do semanário ao mesmo tempo em que serve aos interesses da hegemonia neoliberal, alerta o candidato Fernando Henrique Cardoso de seu dever para com as elites econômicas do país (e externas) e tenta fazer com que o leitor entenda que o então Presidente da República, caso reeleito, não pode perder de vista seu compromisso com a modernização economicista que marcou sua primeira gestão.

A crítica do semanário ao aumento de impostos é, simultaneamente, uma crítica ao candidato que tem uma visão mais intervencionista de governo. A cobrança de mais impostos rechaçada pela revista assinala um possível retorno à políticas de bem-estar social, o que, segundo o discurso de VEJA, mostraria 'fraqueza política’, sendo prejudicial à nação; representaria pois o 'caos'. Segundo a revista, 'essa opção é inaceitável. VEJA, contudo, não tem a preocupação de distinguir para quem tal opção é inaceitável. A revista discursa como proprietária da verdade única, absoluta, da qual não se pode discordar; ou seja, ou se está dicotomicamente do lado dos bons ou dos maus; deixando implícita ao leitor-eleitor-formador de opinião a seguinte questão: de que lado você está? Continuemos a análise:



O discurso do presidente na semana passada parece indicar que ele escolheu o primeiro caminho. Falando no Ministério das Relações Exteriores, na quarta-feira, Fernando Henrique prometeu que o ajuste virá ainda neste ano, e que será rigoroso. (...) A praça gostou do discurso. Logo depois da fala do presidente, sua aprovação nas pesquisas eleitorais subiu ainda mais, indicando que dificilmente deixará de se reeleger. Outros sinais vieram de fora. Ele foi elogiado pelo secretário do Tesouro americano, Robert Rubin, pelo diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus, pelo presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, e pelo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, Enrique Iglesias.

(...) Nem toda a torcida externa pode salvar o Brasil se o governo não agir. A situação é a mais grave já enfrentada pelo Plano Real. As reservas internacionais estão sendo corroídas ao ritmo de 500 milhões de dólares por dia, apesar dos juros de 50% ao ano e das promessas de que não haverá desvalorização da moeda. Não há nem mesmo o perigo de uma mudança política radical, já que as pesquisas eleitorais dão como razoavelmente segura a reeleição de Fernando Henrique. Nada disso segura mais os dólares, depois da hecatombe da Ásia e da Rússia. O que o investidor vê é o déficit de 7% do PIB, que infla a dívida interna, de 346 bilhões de reais, e aponta para o risco de um calote. E vê também o emagrecimento das reservas internacionais, que caíram de 74 bilhões de dólares em abril para 48 bilhões em setembro. Com a corrosão, surge o temor de que não haja dinheiro para honrar os compromissos externos deste ano. "A inação será uma tragédia. Jogará o país numa crise sem precedentes", diz o economista Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.

A seu favor, para convencer a sociedade da urgência das reformas, Fernando Henrique conta com o risco iminente a que o país está exposto. Se a crise não for contida, o cenário futuro é pavimentado de incertezas. O governo terá de desvalorizar o real, o que encarecerá as importações. E não é só o produto supérfluo que ficará mais caro. Alimentos, combustível, matérias-primas e peças que a indústria importa ficarão imediatamente mais caros. O resultado final mais provável é a volta da inflação, a doença que durante duas décadas transferiu renda dos pobres para os ricos e impediu o país de crescer. Um outro efeito, difícil de medir e até de imaginar, seria a desorganização industrial. Com a abertura econômica, as empresas passaram a ser muito mais eficientes, começaram a montar seus produtos com componentes estrangeiros, além dos nacionais, de forma a reduzir custos. Apostaram nas virtudes da competitividade, do corte de custos, da eficiência, enfim. Muitas das melhores empresas, as que formam o tecido sadio da economia nacional, seriam inviáveis se fossem obrigadas a operar sob a velha ordem inflacionaria.



Todos os grifos acima nos fazem crer que, segundo o discurso de VEJA, Fernando Henrique Cardoso estaria do lado dos bons, pois com ele o Brasil conseguiria, entre outras benesses, o vital empréstimo advindo do FMI e não emergiria no caos. Para dar suporte à sua tese, o discurso de VEJA se vale de declarações não somente de imponentes figuras do sistema monetário internacional mas ainda de um especialista ferrenho defensor das políticas de modernização da sociedade brasileira implantadas pelo governo brasileiro da época, Maílson da Nóbrega. As técnicas de persuasão de VEJA, de não mostrar caminhos alternativos que fora de sua visão de mundo, parecem não deixar alternativa crítica ao leitor desavisado a não ser a crença de que há um único caminho a ser trilhado no processo eleitoral, ou seja, a escolha do candidato do establishment.

Observamos em nossas análises que é regularmente através da estratégia da “naturalização do discurso”, da qual fala o Lingüista Norman Fairclough, da Escola Inglesa de Análise Crítica do Discurso, que a revista utiliza o desejo e o sonho como ingredientes no jogo da oferta e da procura, tentando banalizar o debate ideológico. Aqui, a lógica da competitividade foi elevada ao nível de imperativo natural da sociedade. O “bem-comum” passava a ser entendido como fruto necessariamente extraído da competição e não da solidariedade; daí a justificativa para o desmantelamento do Estado-Providência – considerado agora insuportável – para onde, de alguma forma, o país parecia caminhar no último quarto do século XX.

Segundo Norman Fairclough, há uma tendência na literatura em confundir visões de mundo particulares com ‘verdades incontestáveis’, com ‘conhecimento geral’. Esta, segundo o autor, é, por si própria, uma atitude altamente ideológica onde representações particulares de mundo são ‘naturalmente’ atreladas às bases da sociedade como um todo e tal procedimento é feito possível pelo uso de estratégias discursivas diversas. Fairclough entende ainda que a interação com o leitor não se dá a partir de pressupostos históricos, de vivências, experiências e emoções, mas a partir da informação fria, solta, descontextualizada que às vezes chega de um mundo distante cujo contexto social, econômico e cultural, escapa ao nosso repertório. A mistura de ficção e realidade acaba confundindo as pessoas porque tudo está baseado na técnica de transmissão de um conhecimento aparentemente verdadeiro para todos os seres sociais.

Via a ‘naturalização do discurso’ da qual trata Fairclough, ideologias em forma de “produtos” que enfatizam um universo fragmentário e que tendem a reduzir a atitude crítica em relação a realidade, podem ser adquiridas sem grandes questionamentos pelos consumidores. Constatamos em nossas análises que o discurso de VEJA, de apologia do modelo de capitalismo desorganizado – ainda que deva ser respeitado enquanto ideologia de um grupo – esteve efetivamente vazio de contexto. Conforme mostraremos adiante, tal discurso esteve longe de condizer com a realidade brasileira do período em questão, sobretudo no que diz respeito às questões de cunho social.

Cabe ressaltar que até o final da década de 90, a aplicação do modelo de capitalismo desorganizado no Brasil e nos países vizinhos não trouxera resultados positivos em termos de crescimento econômico ou distribuição de renda. Ao contrário, somente havia agravado a situação dos nacionais e dos vizinhos latino-americanos. VEJA, porém, doutrinária, irredutível, usando as estratégias de difusão ideológica da indústria cultural, permanece transportando a crença de que o modelo de capitalismo, desorganizado, era o melhor projeto de país de que se tinha notícia (ainda que o sistema estivesse em crise).

Alguns exemplos que ilustram a lógica e os resultados da aplicação do modelo desorganizado de capitalismo no caso da América Latina são a situação econômico-política que enfrentariam a Argentina e a Venezuela, os impasses vividos pelo Equador e o Peru e os movimentos do fim da década de 90 e início de 2000 de desestabilização da economia brasileira. Antes da aplicação do modelo, o Brasil tivera taxas de crescimento significativas. De 1900 a 1989 a economia brasileira cresceu em média 6,21% por ano. Considerados somente os 35 anos que vão do pós-guerra até 1979, a taxa anual salta para 7,24%. Esse longo ciclo de expansão perdeu força nos anos 80, quando o incremento do PIB foi de apenas 2,93% anuais. Nos anos 90, com a introdução de políticas radicalmente liberalizantes, a economia passou a alternar momentos de crescimento com ciclos periódicos de estagnação, com o que a taxa média de crescimento do PIB de 1990 a 2001 caiu ainda mais, situando-se em torno de menos de 2%.

Como atesta Aloizio Mercadante , em termos do aumento da renda média por habitante, o reflexo é igualmente esclarecedor. “Enquanto no período 1945/79 o crescimento anual do PIB per capita foi, em média, de 4,35%, entre 1980 e 2001, apesar da forte redução na taxa de crescimento da população vis-à-vis o período anterior, a taxa anual não passou de 0,59% e, nos 12 anos de vigência da atual política econômica, caiu para 0,51% ao ano. Com essa taxa de crescimento levaríamos aproximadamente 282 anos para atingir o atual nível de renda por habitante de um país de desenvolvimento médio como a Espanha (US$ 14.960/ano). Como sugerem alguns estudos, se nos últimos 22 anos o país tivesse podido manter uma taxa de crescimento similar à média dos 60 anos anteriores - e supondo que a arrecadação de impostos e contribuições crescera ao mesmo ritmo do PIB-, hoje não teríamos nenhum problema na área fiscal”.

Como resultado da aplicação de medidas radicalmente liberalizantes, não somente o Brasil, mas toda América Latina, além de perder o otimismo, começava, no final da década de 90, a perder também a confiança dos chamados mercados, tanto do capital financeiro como do produtivo. A Cepal informaria dois anos depois que, de 1999 para 2000, o investimento direto na América Latina/Caribe diminuíra de US$ 105 bilhões para US$ 80 bilhões, interrompendo uma década de crescimento . O discurso de VEJA, ainda que aborde a questão (até pelo potencial de sua gravidade), em matéria do caderno “Internacional” da edição 1652 de 1999, não enfatiza esta realidade; ao contrário, segue, conforme constatamos abaixo, defendendo o capitalismo desorganizado (o neoliberalismo) como a saída mais viável para a crise desse mesmo capitalismo e, como agravante, caracterizando as alternativas como ‘retrocesso’:



Uma febre latina

A América do Sul é incendiada por crises políticas e econômicas e investidores internacionais temem que haja retrocesso

Eliana Simonetti



Quando se olha para os países latino-americanos, nota-se que a maioria deles está afundando. As taxas do PIB desses países previstas para este ano são deprimentes em relação ao clima de euforia que imperava em toda a região até bem pouco tempo atrás. Desta vez, porém, a crise tem uma formidável atenuante. Basicamente, ela foi detonada por um único ingrediente: o miserável desempenho das exportações dos países da região. Nada a ver com o abismo caótico que engoliu a economia desses países nos anos 80 – aquela sim uma crise para ninguém botar defeito, com moratória unilateral da dívida, índices africanos de miséria e governos dominados por ditaduras militares.





Numa concepção radicalmente liberal de mundo, o temo “exportar”, parece ser condição sine-qua-non para a sobrevivência das sociedades humanas. Mesmo que em detrimento do mercado interno, o que vale é que estas economias contem com um excedente de exportação que garantam o bem-estar material de uma burguesia interna – conseguido através de medidas, sobretudo, debilitantes da mão-de-obra assalariada, sob a subserviência do Estado –, capaz de lhe garantir competitividade no jogo do mercado internacional. Ocorre que, no momento histórico de então, a competitividade era desigual, condenando os países periféricos a conviver com permanentes déficits em suas balanças comerciais.

Dadas as evidências, a revista VEJA, ainda que não admita haver uma crise da hegemonia neoliberal, admite haver uma relativa crise econômica, causada pela fragilidade dos países sul-americanos que haviam apegado-se à doutrina liberal radical. A revista, contudo, como forma de justificar o mau desenvolvimento do modelo desorganizado de capitalismo no Cone Sul, prefere atacar modelos anteriores, evitando, com isso, evidenciar as causas da crise de hegemonia daquele.

O 'abismo caótico' a que se refere a revista, trata-se do resultado da incapacidade dos Estados, no momento em que suas economias eram ainda fortemente marcadas por políticas intervencionistas, de dar respostas as crises inflacionarias que sufocavam a região em questão. A revista faz confusão, pois mistura modelos político-econômicos (no caso, intervencionista) com sistemas políticos (no caso, autoritário). Pela necessária associação da idéia de livre-mercado à de 'democracia' há o perigo de confundir o leitor quando da tirada de conclusões. Mais abaixo,



Há problemas econômicos, e também políticos, por todo lado. As economias encolhem, o desemprego é crescente e os governos são cada vez mais impopulares. Entre os investidores internacionais está crescendo o temor de um retrocesso – não só para o protecionismo e o nacionalismo econômico, mas também um retorno às soluções autoritárias de governo.



De toda forma, ainda que não admita explicitamente que há problemas sociais muito sérios, a revista admite ao menos o óbvio; que há 'problemas econômicos e políticos por todo lado', mas não explica de onde vêm os mesmos, ou seja, os dogmas liberais radicais são poupados mais uma vez. Sua posição de defesa de tais dogmas fica mais evidente quando da escolha do substantivo 'retrocesso' para explicar o que representaria um retorno às políticas protecionistas. Neste caso, em que o liberalismo radical não conseguia dar respostas satisfatórias aos anseios dos povos, VEJA, muito provavelmente para associar positivamente a doutrina liberal radical à idéia de democracia, criou um discurso de temor frente a um certo ‘perigo golpista’. Mais abaixo,



Quem estuda o cozido sul-americano conclui que é chegada a hora de virar o caldeirão. Os governos acharam que seria possível abrir a economia de mercado e embarcar na integração internacional mantendo o estado e o cenário interno de seus países pouco alterados. Já viram que não vai dar. Um país com um Estado inchado e excessivamente intervencionista não atrai dinheiro de poupadores estrangeiros. Um governo perdulário não inspira confiança. E empresas que cultivam o desperdício não conseguem produzir nada que tenha preço e qualidade para concorrer no mercado mundial. "A América do Sul está passando por um mau momento e já está claro que as reformas terão de ser aceleradas", diz o ex-ministro Mailson da Nóbrega.

De qualquer forma, é uma quimera esperar que os investidores internacionais sejam mais condescendentes ou pacientes. Para atrair dólares sadios e voltar a crescer com vigor, os países latino-americanos têm de reformar suas economias num ritmo ainda mais forte. Como diz o mantra de Wall Street, "se quer que confiem em você, seja confiável".





O que as passagens acima pregam como antídoto anti-crise liberal radical é uma espécie de choque de radicalismo liberal, ou seja, mais liberalismo radical. O ano é 1999 e o Brasil já havia adotado inúmeras medidas dessa natureza que resultaram em desgraças sociais, mas a revista insiste que o correto seria agradar os investidores internacionais. O setenta bilhões de dólares resultantes das privatizações de empresas estatais – altamente exploradas por VEJA em edições anteriores como 'medidas corretas e necessárias' – serviram basicamente para criar condições para o estabelecimento do Capital como imperador nesta parte do mundo, em detrimento do Trabalho, mas não conseguiram impedir que lhe faltasse recursos para investimentos e, conseqüentemente, se encontrasse inapto a concorrer internacionalmente.

O resultado é que o país estava mais pobre, pois não tinha dinheiro para investimento e, agora, sequer patrimônio que garantisse a produção. Para a tomada de quaisquer decisões, o país teria necessariamente que consultar o FMI (Fundo Monetário Internacional), o qual, contando com recursos abundantes para empréstimos à juros, se assim o desejasse fazer, apontaria as diretrizes de como fazê-lo. Essa não era necessariamente uma condição nova, a novidade consistia na perda de soberania porque passava o país na era do governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). As soluções formuladas por VEJA para a crise do liberalismo radical no Brasil nesta passagem, haviam sido aplicadas na Argentina alguns anos atrás e os resultados obtidos naquele país não somente começavam a mostrar-se absolutamente inócuos mas levariam o país vizinho do Brasil à uma crise econômica, política e social sem precedentes em sua história.

Como no capitalismo clássico, a implantação de medidas liberais radicais, contudo, não necessariamente representa perdas para todos os setores de uma sociedade. Os setores que não dependem de emprego e renda assalariada – que, ao contrário, podem contar com excedente de Capital e crédito – e que portanto podem diversificar suas atividades econômicas, normalmente lucram (muito) com a implantação de tais medidas. O grande obstáculo é que, em sociedades atrasadas como a brasileira, ou mesmo a Argentina, estes setores são absolutamente minoria. Desta feita, os lucros provenientes de suas atividades econômicas não são reinvestidos na recuperação social da imensa maioria dos demais setores da sociedade, mas em atividades que lhes garantam a aquisição de bens posicionais, como aplicações financeiras, causando normalmente grande desequilíbrio entre tais setores.

Segundo o jornal 'El País', de 04/06/2002, "Nos anos 90 as reformas melhoraram os serviços públicos, geraram crescimento e contiveram a alta de preços, mas foram insuficientes para que os sul-americanos vivam melhor. A pobreza atinge 44% da população e o número de desempregados duplicou em dez anos". Esse é o grande provocador de crises que VEJA, justamente por fazer parte dos setores privilegiados pelo liberalismo radical, não faz questão de enxergar. E, mais uma vez, para dar suporte à sua tese, a revista vale-se estrategicamente de um especialista que é defensor do mesmo governo que implementa as medidas liberais radicais no país. O quadro abaixo é bastante ilustrativo do que representou para o crescimento per capta a aplicação do modelo de capitalismo desorganizado nas Américas, com ênfase para o Brasil, a partir do final dos anos 80.











CRESCIMENTO DO PIB POR HABITANTE 1913/1998





PAÍS/REGIÃO PERÍODOS





1913/1950 1950/1973 1973/1990 1990/1998





Estados Unidos 76,7% 74,1% 38,2% 17,0%





América Latina 69,0% 77,4% 11,6% 14,6%





Brasil 174,4% 173,0% 27,9% 10,0%



Fonte: CEPAL 2002





A crise do capitalismo desorganizado não era, contudo, exclusividade da América latina e Caribe. Em 2001, documentos da Unctad mostrariam que 15% da população mundial concentrava 80% do PIB do globo terrestre. O relatório anual do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) de julho de 1999 já mostrara que, em números absolutos, a quantidade de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia passara de 1,2 bilhão em 1987 para 1,5 bilhão naquela data. Segundo o Banco, se aquelas tendências persistissem, em 2015 haveria 1,9 bilhão de pessoas em tais condições (a América Latina estava entre as regiões onde a pobreza mais crescia).

O relatório lembrava ainda que a relação entre melhoria na renda média e redução da pobreza nem sempre andam juntas, pois, mesmo quando a renda média aumenta, a redução da pobreza pode não ocorrer no mesmo ritmo. De 4,4 bilhões de pessoas vivendo em países em desenvolvimento, cerca de 60% não tinham acesso a condições básicas de saneamento, um terço não sabia o que é água limpa, 25% não tinham moradia adequada e 20% estavam sem acesso a serviços médicos. Entre as crianças, 20% não completavam cinco anos de escolaridade nem sequer se alimentavam de modo adequado.

Observa-se, pois, que entre o discurso de VEJA, de apologia do capitalismo desorganizado, e os efeitos deste não somente deste lado do planeta, mas em todo o mundo, há uma distância considerável. Na verdade, a revista nunca negou os dados, contudo sempre isentou o liberalismo radical pelos efeitos devastadores de sua aplicação. Uma das formas de superação da realidade que reportamos acima passaria pela reflexão coletiva sobre o que é que possibilita a reprodução de tamanho desequilíbrio.

O semanário, contudo, não parece estar exatamente preocupado com decisões coletivas, pois elas poderiam escapar à sua visão de mundo. Como mostra a matéria do Caderno Internacional, número 1652 de 07 de junho de 2000, a mais importante publicação da Editora Abril procurou atribuir ideologicamente à fatores outros a queda acentuada do crescimento econômico e o crescimento das desigualdades sociais no Brasil e no planeta como um todo:

Argentina

Facão no salário

Numa América conturbada política e economicamente, o governo argentino corta a renda dos aposentados e dos funcionários públicos

Eliana Giannella Simonetti



Na seqüência dos ajustes que vem fazendo há mais de dez anos para estabilizar a economia, a Argentina apelou na semana passada para o mais chocante pacote já editado no país. Três exemplos das medidas:

Corte no salário dos funcionários públicos, entre 12% e 15%. Aposentados com menos de 50 anos de idade receberão a metade da pensão e os que têm entre 50 e 60 anos sofrerão um corte de 33% nos rendimentos. Corte no orçamento das universidades públicas da ordem de 15 milhões de dólares.

O governo argentino ousou e o povo que luta para livrar-se do pesadelo da hiperinflação e reingressar no nobre clube dos países equilibrados descobriu que seu sofrimento ainda está longe de terminar.

Possui um parque industrial que ainda não teve tempo para se modernizar.

"É um sacrifício necessário para manter a estabilidade", diz o economista-chefe para as Américas do banco holandês ING Barings, Arturo Porzecanski.



A passagem parece querer dar uma conotação positiva ao 'esforço' do governo argentino para estabilizar a economia. O uso do verbo 'ousar' — que contextualizado corresponde à 'ter coragem de' —, explicita a posição da revista; o citado verbo usado sugere uma certa justificativa para os cortes sociais do governo. A revista tenta justificar tais cortes sociais como 'uma necessidade’ de combate à hiperinflação, crença típica dos defensores do mercado.

À época da realização desta matéria, 07/06/2000, havia quase uma dezena de anos de introdução de políticas radicalmente liberais na Argentina. Motivada pela crença nos modelos de capitalismo desorganizado, a revista alega que o tempo não teria sido suficiente para as empresas ‘se modernizarem', causa, segundo a revista, da quebradeira no país. Em defesa dos modelos de capitalismo desorganizado, o discurso de VEJA culpa a timidez dos choques de radicalismo liberal que contivesse o perigo da hiperinflação como a causa, provisória, do insucesso das medidas implantadas na Argentina a partir de finais dos anos 80, e não de falhas da doutrina por si só.

Para dar consistência à sua tese, VEJA utiliza um artifício, muito comum no jornalismo, que é o de transcrever a opinião de especialistas no assunto em questão. Sua posição de defesa do neoliberalismo, contudo, se evidencia na escolha de um especialista em particular. Trata-se de uma pessoa fortemente ligada ao sistema bancário internacional, ou seja, a quem muito interessa a implantação de políticas radicalmente liberais em todo o globo terrestre. O discurso de VEJA não se restringe, contudo, a fazer apologia dos modelos de capitalismo desorganizado e tentar, assim, encontrar justificativas procedentes para as falhas deste. Conforme observamos abaixo outros fatores, alheios à aplicação do modelo em si, são normalmente trazidos à baila para reforçar tal defesa:



O estrago não fica por aí. Há também uma questão moral incomodando os argentinos. Depois de agüentar por dois mandatos as costeletas, as brigas familiares e a fanfarronice de Carlos Menem, a Argentina elegeu Fernando de la Rúa para substituí-lo. De la Rúa é um político mais conservador, pelo menos no que diz respeito ao comportamento em público. Se ainda está muito longe de emular Menem nesse terreno, o novo presidente tem um filho que promete não fazer feio. Na semana passada, a imprensa local divulgou fotos de Antonito abraçado à cantora colombiana Shakira, em trajes de banho, numa praia de Miami. Anunciava-se o namoro dos pombinhos. Antonito, segundo se divulgou, alugara um apartamento no balneário americano – e não ficou bem claro quem pagou a conta das férias, já que o rapaz, de 26 anos, nunca trabalhou. "Estou tremendamente indignado com o fato de a publicidade do namoro de meu filho ter coincidido com o anúncio dos cortes no Orçamento do governo", disse De la Rúa.





No momento em que elege a vida particular de um único indivíduo, que não está ligado diretamente ao assunto em questão ou que, longe de poder influenciar no processo, não pode responder pelo momento histórico que vive uma nação do porte da Argentina, a revista incorre numa incoerência argumentativa. Na verdade, a quebradeira argentina não é resultado de quaisquer 'questões morais', mas essencialmente político-econômica. Esta estratégia discursiva pode ser bastante eficaz quando, por falta de argumentos sólidos para se defender uma posição, tenta-se desviar a atenção do leitor para problemas menores, atrelando-os ao principal:



Os argentinos formam um dos países mais ricos da América do Sul. Têm terras férteis, população com alto grau de escolaridade, uma cultura rara no Cone Sul. Foram enfraquecidos por anos de populismo, de ditadura militar e de guerra, mas saíram na dianteira dos vizinhos quando chegou o momento de fazer reformas políticas, econômicas e institucionais. Imagine-se que, até os anos 50, um funcionário público podia deixar seu posto de herança para um filho! Pois é, hoje os argentinos têm um setor de telecomunicações desenvolvido e uma das legislações trabalhistas mais modernas da região. Praticamente todas as suas empresas estatais foram privatizadas. Precisam de tempo para voltar a crescer.





O fato de a Argentina ser um dos países menos pobres da América do Sul – (até porque não existem 'países ricos' deste lado do mundo, o que não parece pressuposto aqui e o que a revista 'esqueceu-se' de citar) não se deve ao fato de a Argentina ter-se enviesado pelo abandono das políticas sociais, mas, ao contrário, tais políticas sociais, possibilitadas ainda que pelo populismo ou pelo terror – colocado pela revista como responsável por todos os males – é que permitiram, pela boa ou má prática intervencionista, a elevação cultural e escolar do povo argentino.

A revista deixa mais evidente sua posição de apoio ao liberalismo radical, contudo, ao chamar de 'uma das legislações trabalhistas mais modernas da região' à nova legislação argentina que pleiteava extrair direitos trabalhistas da população economicamente ativa em geral. Logo em seguida, e desta vez pelos evidentes maus resultados apresentados pela privatização de empresas estatais, o discurso do semanal vale-se novamente da estratégia de culpar o 'curto espaço de tempo' de implantação do modelo neoliberal como responsável pelos males que assolariam os argentinos por longa data.



Acompanhar o trançado de pernas do tango argentino, hoje em dia, virou uma obrigação de todo sul-americano preocupado com o futuro. Seria recomendável até que se organizasse uma torcida de apoio ao time de futebol portenho Boca Juniors na Taça Libertadores da América. "Nesta altura dos acontecimentos, até a vitória num campeonato pode servir para dar mais fôlego aos argentinos", diz o ex-ministro Mailson da Nóbrega. "Uma crise na Argentina teria o poder de contaminar toda a região."





Além da tentativa de banalização de uma crise da importância da Argentina – pela tentativa improcedente de associa-la a uma partida de futebol – a revista recorre mais uma vez, à estratégia de transcrever a opinião de especialistas no assunto em questão, para dar suporte à sua tese. Desta vez, o escolhido é um ex-ministro, defensor das políticas econômicas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso e, por extensão, de governos simpáticos aos dogmas neoliberais.



O caso argentino é um convite para observar o que vem ocorrendo nos outros países da América do Sul. Na aparência, estão todos entrando, como em outras fases da História, numa onda orquestrada em cuja espuma se misturariam crise econômica, endurecimento político, pobreza. De fato, há crises por todos os lados. Mas, analisadas ao microscópio, cada uma tem formato, origem e conseqüências diferentes. A raiz dos problemas argentinos está na economia pouco competitiva. A do Paraguai, na absoluta falta de economia e de instituições (inclusive Justiça, polícia, legislação). O Paraguai, aparentemente, só não é uma ditadura porque depende do acordo comercial do Mercosul para sobreviver. E os sócios do Mercosul estão obrigados a manter o regime democrático. Na Colômbia, a convivência com a guerrilha e as drogas acabou minando a estabilidade econômica. E, no caso da Venezuela, o rompimento de um balanço político de décadas, coincidindo com a queda no preço internacional do petróleo, levou ao poder um megalomaníaco, Hugo Chávez. Cerca de dez dias atrás ele adiou eleições que poderiam regularizar a situação política do país.





Nas três sentenças iniciais desta passagem ainda que admita a existência de crises generalizadas no cone sul da América, a revista tenta minimizar a crise de hegemonia da doutrina neoliberal que então se propaga. Muito embora inicialmente apresente a realidade social dentro de 'blocos históricos', exibindo-a como crises cíclicas, inerentes ao capitalismo, tenta logo em seguida eximir de culpa a doutrina da modernidade liberal radical pelo mal-estar dos países em questão. Inversamente, sustentando como falta de competitividade (para a crise Argentina) e como falta de um Estado forte para fazer fluir o livre-mercado (para a crise do Paraguai), VEJA mostra-se favorável a uma aplicação mais ferrenha da doutrina liberal radical do que a que fora apresentada até então.

Quanto à Venezuela, a revista suspende por algumas linhas a apologia da doutrina liberal. Ela deixa de enfatizar a relação dos crônicos problemas econômicos que o país enfrentava, havia anos, com o contexto internacional de queda do preço de seu principal produto, o petróleo. Ao contrário, coloca tais problemas como secundários e liga tais problemas à figura daquele que chama de 'megalomaníaco presidente venezuelano', recém empossado no cargo e antipático à doutrina liberal radical.

É também característico de VEJA omitir fatos. Num mundo de olhar único, não diz, por exemplo, que Chávez – que realizava no governo exatamente o que prometera nas campanhas eleitorais e, para tal recebera maciço apoio do povo: reforma agrária; fim do peleguismo sindical; taxação dos empresários; controle rígido de preços para o petróleo – venceu esmagadoramente, em cinco eleições seguidas, as elites dirigentes que haviam governado o país nos últimos quarenta anos. A revista se limita a, ambiguamente, citar 'o rompimento de um balanço político de décadas'. Da mesma forma, não revela que os perdedores – grupo composto majoritariamente por proprietários dos meios de comunicação daquele país – passaram a conspirar para depô-lo, desde o seu primeiro dia na presidência da República. Por ser avesso à políticas neoliberais, Chávez é apresentado por VEJA, bem como pelos meios de comunicação venezuelanos, como populista, demagogo, incompetente e falastrão, um golpista que está preparando um golpe contra a "democracia" venezuelana.



Houve um tempo em que era possível dizer que existia um paradigma sul-americano. Começou com a colonização, passou pela independência, depois entrou no populismo (de esquerda ou de direita, conforme o caso) nas décadas de 50 e 60. Daí todos desembocaram em ditaduras militares. O processo de redemocratização ainda é jovem. E os países da América do Sul, engatinhando, saíram do cercadinho, sem escalas, para a economia globalizada. Era de esperar que tivessem problemas.





Procurando confundir política e economia como um sistema único, indivisível, VEJA, claramente avessa a atribuir a crise eminentemente econômica por que passavam os países da América do Sul ao modelo de abertura dos mercados sul-americanos, a interpreta como fruto da falta de tato desses países com o juvenil sistema democrático. Ora, grande parte dos problemas econômicos por que passava a Argentina se davam em função do pagamento dos juros da dívida externa (na época, quase 50% do PIB; fato não comentado pela revista); dívida esta contraída, em grande parte, pelos vários ditadores argentinos – que iniciaram o processo de abertura econômica –, no rastro do que fizera o ditador chileno Augusto Pinochet, em 1973. Na prática, não há, portanto, contradição entre modelo econômico liberal radical e sistema político não-democrático. Entrementes, o grande culpado pela crise estava, para VEJA, não no modelo econômico, mas nos sistemas políticos sul-americanos. A revista, porém, não diz o por quê. Mais abaixo,



Mas, considerando as dimensões da confusão em que se meteram, até que se vêm dando muito bem. A Argentina deve crescer 3% neste ano, com inflação zero. Com todas as dificuldades recentes, tem 26 bilhões de dólares em reservas internacionais, o que corresponde a quatro meses de exportação. Uma boa taxa.

"As obras de infra-estrutura que estão sendo construídas nas fronteiras brasileiras, como os gasodutos, podem promover uma integração de fato entre os países. E um intercâmbio maior levará ao crescimento econômico", diz Renato Baumann, professor de economia internacional na Universidade de Brasília e economista da Cepal, uma instituição especializada em estudar os problemas econômicos, políticos e sociais da América Latina. Alguém poderia dizer que essa locomotiva está meio lerda. Mas os sinais do momento são promissores. O Brasil cresceu 3% no primeiro trimestre deste ano. E isso com juros altos. Quer dizer, dá até para ser um pouco otimista.



Nem mesmo as mais otimistas previsões liberais radicais de VEJA ajudariam a tirar a Argentina do caos no ano da reportagem (2000) e nos anos subseqüentes. O país não cresceria acima de 2% ao ano e seus 26 bilhões de dólares em reservas internacionais se evaporariam ainda naquele, gerando uma crise político-econômica sem precedentes na história do país.

O especialista escolhido para dar suporte à tese positiva da revista de que a integração econômica –se regional ou via Alca a revista não especifica – era a panacéia para os males sofridos pelos países da região, desta vez, é um membro da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), instituição esta que produziu pensadores de diferentes linhas ideológicas como Celso Furtado e o Professor e, então Presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso. A própria Cepal traria números desoladores em 2002 e recomendaria ao mundo repensar a aplicação deliberada de políticas liberais radicais. A instituição informaria dois anos mais tarde que, de 1999 para 2000, o investimento direto na América Latina/Caribe diminuiu de US$ 105 bilhões para US$ 80 bilhões, interrompendo uma década de crescimento sem precedentes, e alertava para uma tendência de queda paulatina nos investimentos.

Não obstante o insucesso das políticas liberais radicais começasse a se mostrar evidente, VEJA não se mostrava bastante motivada a mudar seu discurso. O semanal parecia fortalecer seu discurso de apologia do modelo a cada nova matéria sobre o assunto. A publicação passa, relutantemente, a utilizar-se de novas estratégias de linguagem provavelmente voltadas à persuasão de seus leitores, como verificaremos mais adiante. A lógica político-cultural da feroz competição, não necessariamente econômica, que move a revista VEJA nesta direção é o que discutiremos a seguir, pois em tal lógica, que põe os indivíduos a viverem permanentemente contrapostos uns aos outros, à solidariedade, é Intrigantemente valor a ser desprezado e esquecido.

Considerando a desigualdade como um valor positivo, o discurso do semanário enquadra-se dentro da lógica dos resultados de longo prazo da indústria cultural. Como veremos abaixo, esse discurso fustiga relações de indiferença recíproca que são, por essência, socialmente desarticuladores e despolitizantes e dirige-se à uma parcela da população que, a exemplo dos próprios formuladores da revista, depois de ter atingido um certo nível de renda passa a prezar não pela redistribuição como projeto de sociedade mas pela aquisição de bens posicionais (carros importados, roupas de grife, escolas particulares, títulos acadêmicos, etc) para si própria, ou seja, mais concentração.

A revista VEJA é prototípica neste processo. A exemplo de outros instrumentos de controle social, o semanal do Grupo Abril, tenta criar respostas para o que a modernidade deixou a desejar. No simulacro criado pela revista, as pessoas, individualmente, se realizam. Nas imagens e no discurso de conforto, as pessoas se projetam para a páginas do semanário e lá encontram o que buscam: o Deus que a modernidade abominou, a justiça, a indignação, o espetáculo.

Tal dinâmica, pós-modernista e própria de nosso tempo, é a dinâmica resultante do que muitos autores chamam de 'o mal-estar da modernidade'. A insegurança real vivida pelo Homem contemporâneo gera um desejo de segurança material extremado, que na verdade é uma violência simbólica resultante da violência material (modernização). Tais autores, ao falarem em mal-estar referem-se a impotência pós-moderna diante da tentativa de explicação do real.

O mal-estar da modernidade se revela, pois, como resultado dos avanços tecnológicos, econômicos e sociais em relação ao passado. A tecnologia da informação cresce a um nível infinitamente maior que a capacidade humana de se adaptar à tais mudanças; ela está à frente do tempo dos mortais, enquanto exige destes que adaptem-se ao tempo dela. Há uma desproporção entre o acesso à informação e a capacidade humana de absorção e criação de coerência à essa informação que chega velozmente, pois a capacidade humana de processamento é limitada. O ser humano, já não mais tendo tempo para se conhecer, passa a sofrer um processo de constante insatisfação. Isso representa, por sua vez, um paradoxo, dado que a tecnologia se reverte, na prática, na escassez de tempo; o que um dia a modernidade prometera ser exatamente o oposto.

Ao final do milênio, com a exposição da crise neoliberal, a própria revista VEJA já demonstrava que suas certezas haviam se transformado em espetaculares incertezas. O discurso de VEJA, contudo, insistia em soluções que abandonassem as grandes narrativas Iluministas, conforme demonstramos na matéria abaixo:



O desafio do 3º milênio

A diferença de renda de suíços e moçambicanos é de 500 dólares para 1. O mundo terá de resolver disparidades como essa.

Eliana Simonetti



Caderno economia e negócios - Edição 1618 – 6 de outubro de 1999



Ao que tudo indica, a disparidade entre os muito ricos e os muito pobres é o principal problema que o mundo terá de enfrentar no terceiro milênio. Em Hong Kong, uma ilha de 6,5 milhões de habitantes, produzem-se anualmente 171 bilhões de dólares. (...) A pobreza é uma questão que preocupa o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas e o próprio FMI há muitos anos. Do ponto de vista dos técnicos do Fundo, continuam sendo prioridades absolutas o ajuste fiscal, nos países em desenvolvimento, a abertura dos mercados e a solidez do sistema financeiro internacional. (...) A questão da pobreza é mais complexa. Não há receita alguma de órgão financeiro ou de entidade benemerente capaz de resolvê-la com facilidade. Países emergentes que se empenharem com vigor no combate às desigualdades sociais poderão diminuí-las, mas nunca no prazo curto. (...) Encontrar a fórmula certa para que esse projeto tenha sucesso é muito complicado.





Quando VEJA afirma que não há receita capaz de resolver a questão da pobreza com facilidade, ela inicialmente deixa de enfatizar os motivos que levam uns povos a permanecerem na penúria enquanto outros sequer encontram espaços de consumo. Observe-se que somente um lado ideológico é ouvido para opinar sobre a pobreza, suas causas e formas de superá-la. Ora, a fórmula para a resolução do problema da pobreza será a mesma segundo a ótica de um consultado ou de centenas deles. O cerne da questão aqui é a onipresença do discurso único que parte de um dado pressuposto e, a partir daí, tenta formular soluções para a superação da pobreza e de outros problemas da humanidade. O pressuposto onipotente aqui é o livre mercado como parte intrínseca das sociedades humanas. Formas outras de produção e distribuição sequer são trazidas à baila pela revista. A passagem abaixo ratifica nossa assertiva:



Recentemente, na universidade americana Harvard, cinqüenta estudiosos de todas as especialidades (entre eles o historiador David Landes e os economistas Jeffrey Sachs e Francis Fukuyama) dedicaram uma semana ao debate do problema – entenda-se, não à constatação da existência e do crescimento do número de pobres, mas à busca das razões da pobreza. Concluíram que, além dos motivos conhecidos, como escassez de riquezas naturais, governos com administrações desequilibradas e falta de oportunidades de negócios, os países pobres sofrem por uma razão menos palpável: eles têm uma mentalidade que não favorece o enriquecimento, uma espécie de cultura da pobreza. Foi uma conclusão tão perturbadora para todos os presentes que se passou, a partir daí, a discutir se era lícito que países desenvolvidos ou instituições internacionais interviessem para promover a mudança da mentalidade dos povos. "Mais do que qualquer dos fatores que influenciam o desenvolvimento dos países, é principalmente a cultura que explica por que alguns se desenvolvem mais rápida e homogeneamente que outros", diz o economista Lawrence Harrison, professor em Harvard e autor do livro Subdesenvolvimento É um Estado de Espírito. A questão é como fazer para romper o dique entre nações ricas e pobres, porque de uma forma qualquer ele precisa ser rompido. "A paz e a prosperidade do planeta dependem do bem-estar de todos", diz David Landes, professor de história e economia política em Harvard e autor do livro A Riqueza e a Pobreza das Nações.





É bem verdade que VEJA nada mais faz que reportar os fatos nesta passagem. Sua imparcialidade, contudo, desaparece quando, como dissemos acima, a revista não consulta outras correntes do pensamento político, social e econômico para explicar as causas da pobreza no mundo. A revista do Grupo dirigido por Roberto Civita optou por expor o pensamento de um lado apenas e justamente aquele que carrega uma visão um tanto contiana de mundo. O grupo de analistas escolhido para realizar os estudos em Harvard, era composto de convictos liberais, de forma que o resultado de sua pesquisa não se trata de outra coisa senão sua própria hipótese inicial, ou seja, de que há povos aos quais a “cultura da pobreza” é inerente.

Para este grupo de analistas, fatos históricos como a dicotomia ‘colonização de exploração’ versus ‘colonização de povoamento’ não explica os fenômenos sociais, mas, positivisticamente, o que o faz é a natureza dos povos. É como se imaginar que os pobres querem ser pobres e que saem todas as manhãs para trabalhar sem quaisquer objetivos outros senão manter-se vivos. A grande transgressão da revista VEJA é, todavia, sua não-preocupação em chamar a atenção para este fato, como que abonando o ‘resultado’ da pesquisa. Abaixo, verificamos uma tendência da revista a radicalizar suas posições:



Há números espantosos no que diz respeito aos países ricos. A riqueza se espraia nos Estados Unidos em ritmo acelerado. Segundo a revista Forbes, o país tem mais de 200 bilionários e 11 milhões de milionários (esse grupo cresce a um ritmo de cerca de 300 novos milionários por mês). No ano passado, os consumidores americanos, que são menos de 5% da população mundial, foram responsáveis pela metade do crescimento do consumo internacional. A pobreza, por seu lado, é insidiosa. Afeta cada vez mais profundamente os países do sul da África e da América Latina. De acordo com o Banco Mundial, 81% da população do planeta tem rendimentos que, nos Estados Unidos, seriam qualificados como suficientes apenas para uma má alimentação. Cerca de 1,3 bilhão de pessoas vivem com apenas 1 dólar por dia. O Egito é considerado um país em desenvolvimento desde o início do século passado. E não se move há 200 anos. Os Estados Unidos, no século XIX, eram mais ou menos como o Brasil no início deste: uma economia em desenvolvimento, com grande potencial. Por que, afinal, um país vai para a frente e outros não desempacam?





É fato que o sistema capitalista de produção necessita preservar as diferenças econômicas para continuar existindo, para se reproduzir. O problema é que o desenvolvimento do sistema gerou um mundo de diferenças gritantes. A matéria repetidamente não aborda a questão. Não obstante, a publicação inocentemente implícita a resposta para sua pergunta final: “Por que, afinal, um país vai para a frente e outros não desempacam?” “Só os Estados Unidos, segundo a revista Forbes, tem mais de 200 bilionários e 11 milhões de milionários”. Ora, considerando que as riquezas do planeta são limitadas, seria possível um mundo composto apenas de bilionários e milionários? O fato é que, dado o desenvolvimento capitalista pela via liberal radical, há uma forte tendência em que a concentração da riqueza aumente na mesma proporção em que aumenta a concentração da pobreza. A grande concentração das riquezas do planeta – em forma de dinheiro – não é explorado pela revista como possível gerador da pobreza no mundo, mas, contrariamente, como um fator positivo.

Partindo-se deste pressuposto, é possível admitir, como o faz VEJA, a tese de que a raiz da aceitação da condição de pobreza pelo pobre está em sua índole. Se a revista, ao contrário, tivesse dado oportunidade a outros pressupostos muito provavelmente chegaria a conclusões outras que não essa de via única. VEJA, contudo, não parece preocupada com outros pressupostos que não aqueles apologéticos do liberalismo radical. Abaixo, observamos a ratificação pela revista de sua posição:



Já há, nos Estados Unidos, vasta literatura sobre o assunto. O livro mais divertido chama-se Eat the Rich (Coma o Rico) e foi escrito por um jornalista que é completamente analfabeto em matéria de economia, P.J. O'Rourke. Ele passou anos viajando, conhecendo países muito ricos e muito pobres, para entender por que alguns prosperam e outros só afundam. Suas hipóteses: não pode ser uma questão de cérebro, porque nenhuma parte do globo reúne tanta gente estúpida como Beverly Hills, e quem vive lá nada em dinheiro. Por outro lado, na Rússia, onde o xadrez é um esporte que lota estádios, as pessoas estão fazendo sopa de pedra. A educação sozinha também não responde à questão. "Os garotos americanos sabem muito bem o que é uma camisinha, mas não estão muito certos de quanto é 9 vezes 7. Mesmo assim são ricos." A África tem diamantes, ouro, urânio e muito mais. É paupérrima. A Escandinávia é pequena e gelada e é rica. Se a explicação estivesse na civilização, na História, a China seria o país mais rico do mundo. Conclusão do jornalista americano: "O milagre da prosperidade das economias industriais modernas está naqueles princípios que nossos pais tentam nos ensinar desde a infância – a importância do trabalho duro, da educação, da responsabilidade, do respeito à propriedade alheia, à lei e à democracia". Ele fala, é claro, dos pais americanos. Pais brasileiros, colombianos, moçambicanos ou namíbios devem estar falhando na tarefa de inculcar essas idéias na cabecinha de suas crianças. "Por alguma razão, as pessoas de países pobres esperam que a prosperidade e a riqueza caiam do céu, embrulhadas em pacote de presente", diz Michael Fairbanks, outro economista de Harvard.





Ao citar a obra de O’Rourke, especificamente a parte em que trata do acúmulo de riqueza como uma obra desprendida da inteligência, a revista parece querer incitar a crença de que mesmo os pobres – por natureza não muito inteligentes – também podem ficar ricos; basta seguir os conselhos dos liberais radicais. Os ricos do condado de Beverly Hills não nos parecem tão estúpidos quanto profetiza O’Rourke (avalizado por VEJA) quando se analisa sua trajetória sob outra ótica. Jornais angelinos diversos mostraram exaustivamente durante as décadas de 80 e 90 que os moradores de Beverly Hills, em sua maioria migrantes enriquecidos, mudavam-se para aquela região e para as Montanhas de Hollywood justamente em busca de segurança e status - em busca de bens posicionais que os diferenciassem dos outros mortais. Além disso, grande parte dessa população composta por banqueiros, investidores e outros especuladores em nível global, está direta ou indiretamente ligada à indústria cultural da vizinha Hollywood, o que faz com que estas pessoas busquem se aproximar de seu campo de atuação.

Se a “posição neodarwinista” de VEJA se perde ao concordar com O’Rourke de que não é esta ou aquela Civilização que determina a riqueza econômica desta ou daquela nação, ela se revigora ao desprender o contexto histórico da realidade dos países em questão, como é o caso dos países africanos. Quando a revista, citando O’Rourke e baseando-se no ‘American Way of Life’, afirma que "O milagre da prosperidade das economias industriais modernas está naqueles princípios que nossos pais tentam nos ensinar desde a infância – a importância do trabalho duro, da educação, da responsabilidade, do respeito à propriedade alheia, à lei e à democracia", ela nada mais faz que superestimar os valores da modernidade liberal. A história dos Estados Unidos, por si só explica as causas do enriquecimento daquele país; história esta que envolve, entre muitos outros fatores, a educação para a guerra, as políticas de anexação de territórios alheios (inclusive do condado de Beverly Hills) e o imperialismo em todos os níveis.



O Brasil, e a América Latina em geral, herdou de seus colonizadores a convicção de que a riqueza é uma dádiva. Portugal e Espanha tinham capital no tempo da colonização. Hoje estão entre os países mais pobres da Europa Ocidental.





É fato que a colonização da América Latina foi realizada por países descompromissados com a modernidade européia então nascente. Fundamentados no catolicismo, Portugal e Espanha longe de afinarem-se com a racionalidade dos ‘contratos sociais’ que surgiam na Europa no período, apegaram-se aos valores mágicos da Igreja Católica. Como afirma Soares, (Soares, 1993, p. 08) “O fato da América Latina ter sido objeto da Conquista de países que viviam o movimento da Contra-Reforma, marcou o futuro da modernidade e sua particular forma de realização; à diferença da Reforma, esse movimento foi a negação da modernidade nascente”. Shayegan completa o raciocínio da autora afirmando que "Estas diferenças farão que a América Latina resulte historicamente atrasada com relação à América do Norte, uma vez que se os norte-americanos nascem com a Reforma e a Enciclopédia, isto é, com o mundo moderno, os latino-americanos irrompem na história com a Contra-Reforma e a neoclássica, dito de outro modo, contra o mundo moderno" (Shayegan, 1990, p. 26) .

VEJA acerta, pois, ao abordar esse importante detalhe histórico como causa (ainda que esta não seja a única) do subdesenvolvimento latino-americano. Mas, daí a tentar atrelar o que ela diz ser a aceitação dos povos latino-americanos, de sua pobreza, como um ‘desejo dos Deuses’, nos parece um tanto desatado da realidade. A novidade, contudo, está em que, pela primeira vez, a matéria admitiu os fatos históricos como responsáveis pela situação de penúria do subcontinente. Inferimos, pois, que a revista tem ciência da interpretação que faz dos processos históricos, entrementes, faz usos dos mesmos como instrumentos de análise somente quando estes dão suporte às suas teses.



(...) A fórmula para resolver o problema foi dada, na semana passada, pelos chefões do FMI e do Banco Mundial: é preciso investir muito, mas muito mesmo, em educação e saúde. A questão, no caso, não é só de volume de dinheiro – é, principalmente, de orientação. O Brasil investe 22% do PIB em programas sociais. É muito dinheiro, mas não resolve os problemas. Primeiro, porque, conforme o próprio presidente da República, grande parte dos recursos se perde no meio do caminho e não chega aos necessitados. Segundo, porque o assistencialismo não produz gente com mais iniciativa, mais criatividade, maior habilitação para o trabalho. O investimento em capital humano, de que falam o FMI e o Banco Mundial, pode ser muito mais barato e gerar melhores resultados. Trata-se de saneamento básico, da universalização dos conceitos de higiene e de escolas que preparem as pessoas para competir nesse mundo novo e implacável com os conformados e malemolentes. Isso mexerá com a cultura dos pobres e eles terão pelo menos a oportunidade de brigar por uma posição melhor na escala social.





No início da matéria, VEJA indagava por que países como a Suécia tornaram-se tão ricos. Agora, defendendo abertamente a posição dos “chefões do FMI” que acham que a saída para uma mudança na “cultura da pobreza” é um investimento maciço em programas de saúde e educação, a publicação observa que o Brasil gasta 22% do PIB com programas sociais e afirma que “é muito dinheiro”. A revista omite, entretanto, que a mesma Suécia gasta 64% do PIB em programas sociais. Os Estados Unidos algo em torno de 34%. Nestes países, sobretudo o primeiro, busca-se entre os diversos atores econômicos e sociais interessados as soluções negociadas que permitirão maximizar o interesse social, econômico e ambiental. No dizer de Dowbor, “quem olha a Suécia, país pequeno, congelado sete meses por ano, com todas as dificuldades econômicas que isto implica, deve-se perguntar a razão da simultânea prosperidade econômica e qualidade de vida. A razão reside, em grande parte, no fato de se zelar não só pelo capital da empresa, mas crescentemente pelo capital social do país.” O imbróglio no discurso de VEJA é que ele busca convencer o leitor de que as convicções ideológicas do presidente do Grupo Abril , ‘da inferioridade natural de alguns povos’, estão acima das necessidades reais do povo brasileiro.



Considerações Finais

O desafio de se compreender os mecanismos de funcionamento de uma sociedade complexa como a brasileira não é uma tarefa que se possa caracterizar como trivial. Este desafio tende a enrobustecer-se quando se recorre ao micro para a compreensão do macro. A mistura pré e pós-moderna que caracteriza a sociedade brasileira e que oprime milhões de pessoas, inclusive os abastados, não é definitivamente um fenômeno natural, emanado por forças sobrenaturais. Da mesma forma, está longe de se tratar de uma 'decorrência natural da história’, como muitas vezes encontramos implícito e explícito no discurso da revista VEJA e das elites econômicas do país – as quais se perdem na ilusão de ser o caminho da concentração o melhor projeto de país para os nacionais.

Essas elites não se vexam com a realidade de os próprios dados oficiais darem conta de que os 10% mais ricos detêm metade da renda brasileira e os 50% mais pobres, portanto metade da população, detém um pouco mais de 10% da renda. Ao contrário do que possa parecer, dentro da lógica pós-modernista que têm caracterizado essas elites nos últimos anos, esse, por mais paradoxal que possa parecer, é exatamente o ponto que faz a diferença. Quanto mais essas elites se distanciam dos demais segmentos sociais, mais se destacam na conquista por bens posicionais. Há uma verdadeira batalha interna dessas elites pela posse de tais bens. Já não lhes interessa a mera espoliação das classes subalternas, mas a certeza de que não serão superadas por seus semelhantes na corrida pela aquisição destes bens posicionais. O que vale é destacar-se como 'pole position' e estar próximo aos ricos e famosos do mundo inteiro. Por isso prezam demasiado, entre outros, os abastados do Primeiro-Mundo e, ainda que sejam os principais responsáveis pelas condições subumanas por quê sobrevive seu povo, abominam as condições sociais 'daqueles que estão por baixo' e deixam-lhes à própria sorte. A lógica em que vivem não lhes permite realizar efetivos gestos de redistribuição que contribuam para a superação do imbróglio pré-pós-modernista brasileiro, pois, antes de serem brasileiros, são cidadãos ricos do mundo. Esta relação é funesta, pois trata-se de categorias dominantes, que detêm o poder econômico e político e, conseqüentemente, tendem a moldar um certo hábitus nas relações sociais.

Por serem detentoras também dos meios de comunicação, essas elites, num 'efeito guarda-chuva', multiplicador, tendem a transferir esses valores ao grosso da população que, por sua vez, inclinam-se a pensar e agir como elas. As pessoas tendem, pois, a perder o referencial do significado de vida em sociedade, da ajuda mútua e da solidariedade, depositando suas esperanças de felicidade material num exacerbado individualismo. Passam, assim, a valorizar aquilo que, mesmo num barraco de favela, possa lhes diferenciar das demais, perdendo paulatinamente a noção modernista de que a condição, um dia vexatória, de escassez é uma provocação humana, e política deveria ser a forma de sua superação.

As elites brasileiras das quais tratamos aqui, elegeram os ensinamentos das doutrinas liberais radicais como guião de seus atos políticos. Perceberam nelas uma forma eficaz de efetivação de sua visão de mundo onde nem mesmo a relutante presença do Estado consegue dispersá-la, e encontraram na forma midiática o caminho mais curto e eficaz para vulgarizar suas ideologias. O discurso da revista VEJA, apologético supremo do liberalismo radical, parece sugerir doutrinariamente a materialização dessas ideologias.