quarta-feira, 7 de julho de 2010

O conservadorismo da Separação dos Poderes

Sendo verdadeiro afirmar que a elaboração da teoria da separação de poderes se deu em meio à necessidade de limitação da atuação do Estado, para que fosse evitada a formação de Estados centralizadores e ditatoriais –, não parece menos verdadeiro afirmar que tal separação tenha tido como pano de fundo a necessidade liberal clássica de manter o Estado sobre o controle dessa doutrina. A Separação dos Poderes parece partir do clássico mito liberal, de que a existência de leis naturais levava o homem a escolher a vida em sociedade, mas não evoca uma revisão dos direitos naturais dos indivíduos (nomeadamente, a propriedade), cuja defesa, na óptica liberal, é o fim último da organização política. Sua lida se traduzia, em última instância, em evitar que um cheque em branco fosse dado ao Estado; para que este se apodasse de toda a administração pública, ou que passasse a intervir nas liberdades fundamentais dos indivíduos, e é com esta perspectiva que desenvolverei o texto abaixo.


Desde a antiguidade, vários pensadores se desdobram nas formas de organização do poder político. Muitos destes se preocupavam com a investigação de uma forma de equilíbrio em que o poder não se mantivesse sustentado nas mãos de uma única pessoa ou instituição. Já nessa época, as implicações de um governo de feições tirânicas ou autoritárias preocupavam as mentes daqueles que voltavam sua atenção ao terreno político. Mais tarde, o ‘Estado’ ainda é visto com desconfiança, particularmente por parte da nascente burguesia, de modo que esta somente se sentirá segura com a adoção de um ideário liberal que lhe garantisse direitos frente ao Estado, fundado principalmente nos valores de liberdade e garantia da propriedade.

Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu, também tinha evidente essa preocupação. A doutrina que criaria pressupunha um equilíbrio no controle do poder e nas relações de dominação, resultando na afirmação da existência de diferentes poderes ou funções e na necessidade de sua atribuição a diferentes titulares. A concepção de mundo que leva Montesquieu a desenvolver sua doutrina baseia-se na existência de direitos naturais dos indivíduos, tais como a propriedade, supostos direitos inerentes à própria pessoa humana, e é daí que resulta sua proposta de organização política.

A Separação dos Poderes tinha claro que a concepção individualista da liberdade impedia que o Estado se desmesurasse nos seus atos, mas, nem por isso, faz menção à proteção dos menos afortunados, às injustiças sociais que dali poderiam derivar. Assegurava a todos o direito de ser livre, mas só podia alcançar essa liberdade os que eram economicamente fortes. No contexto do século XVIII, a doutrina ainda se limitava a interpretar a sociedade como decorrência natural da necessidade do homem em se unir com o seu semelhante em busca de ajuda e proteção mútuas e, sobretudo, em busca de um bem comum, daí que não foi para muito além do que os contratualistas já rezavam havia algum tempo. Ao Estado cumpre reconhecer, garantir e defender aqueles direitos individuais supostamente preexistentes.

Muito embora, em alguma medida, extravasasse de um argumento eminentemente político para uma discussão em torno de princípios de justiça, ampliando o alcance original do argumento contratualista, no seu limite, a doutrina da separação dos poderes é conservadora, na medida em que fica restrita ao aperfeiçoamento do que já existe. Em seu afã liberal de contenção de poder, não extrapola para uma retomada do zero. Para “O espírito das Leis”, o essencial permanece sendo a defesa da liberdade individual, a partir da ordem liberal que começa a tomar forma, e é preciso legitimar essa ordem, permanentemente.

No Estado liberal que se afigurava e buscava hegemonia definitiva, as novas classes dominantes representam uma extrema minoria de pessoas, que não poderia dominar politicamente a imensa maioria dos despossuídos não fosse o uso de suas várias instituições, do chamado aparelho de Estado. A separação tripartite dos poderes sugerida por Montesquieu não somente representaria alguma garantia de controle e limite do aparelho estatal, pela doutrina liberal – o legislativo, o judiciário, o executivo e, como extensão, o sistema de ensino, o aparato administrativo, a polícia e as forças armadas –, como prometia manter o ânimo das massas em relativa inércia, garantindo certo equilíbrio e harmonia sociais. Por mais que se esforçasse para atribuir à sua doutrina uma visão pluralista, abrangendo aspectos filosóficos e jurídicos, intrinsecamente conjugados, o pensamento de Montesquieu estava circundado pela barreira da visão de mundo de um Estado liberal.

O Estado Liberal que resulta da Separação do Poderes não tinha como idéia essencial o elemento popular na formação da vontade estatal – como pressupunha a doutrina contratualista de Rousseau, que depositava no povo toda a soberania –, nem a igualdade de participação popular. Montesquieu fazia parte de um grupo de pensadores liberais que, até então, temiam que os pobres expropriassem os ricos e causassem desordem. Não é por outra razão que por sua cabeça engenhosa, em nenhum momento, passou a possibilidade de criação de um quarto poder, que desse a voz derradeira às classes populares e colocasse o Estado sob seu controle. Ao contrário, seja na forma da monarquia ou da república, o Estado precisava ser entendido como um meio de dominação silenciosa e não um fim em si mesmo.

Não é outro o cálculo de base da labuta liberal e, como extensão, da própria doutrina da Separação dos Poderes. É provável que esta forma de emancipação política que herdamos do século 19 já não nos sirva mais.

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