quarta-feira, 7 de julho de 2010

(As) Simetrias entre Liberalismo e Democracia

Se considerado como um mero conjunto de regras que dá à maioria o poder político, a soberania popular, além da igualdade jurídica, a democracia não parece conflitar com a concepção liberal de mundo. Nela, os cidadãos têm igual valor e são livres para realizar suas escolhas. Sob o viés da igualdade, entretanto, eles se transformam num enorme poço de contradições. Tão grande é o fosso entre eles pelo lado do ideal igualitário que nem mesmo a superação do pensamento liberal, prevendo a igualdade nos pontos de chegada, será capaz de amainar. O pensamento liberal somente poderá livrar o homem contemporâneo dessas contradições e radicalizar a democracia, em nome de sua própria sobrevida, no momento em que previr a igualdade nos pontos de partida; em que procurar transformar liberdade e igualdade em valores complementares e não antitéticos, e é com esta perspectiva que vou desenvolver o texto abaixo.


Embora liberalismo e democracia tenham uma relação quase umbilical, embora seus ideais venham gradualmente se combinando, eles são, em última instância, contraditórios por essência, e isso não é novidade. Tampouco é novidade que a democracia não é exatamente um dos objetivos principais do liberalismo, visto que, em seu cerne, aquela tende a conflitar com estes. A doutrina liberal, sob o ideal da igualdade, é uma concepção de Estado que inviabiliza as mais nobres tentativas de radicalização da democracia. Não é por outra razão que o neo-contratualismo procura fazer apagar essas diferenças, através de eufemismos tais como “justiça” (fairness), “véu da ignorância”, “consenso original” e outros conceitos, um tanto a-históricos, desenvolvidos por pensadores liberais contemporâneos, como o americano John Rawls.

A doutrina, historicamente, tem concebido a democracia como “governo do povo”, exigindo que o Estado se limite a governar o menos possível, enquanto a democracia, assente numa concepção de “governo para o povo”, exige um papel ativo e presente do Estado, em consonância com o cidadão. É nessas perspectivas particulares que assenta a idéia de liberdade para cada um deles, costumeiramente chamados de liberdade negativa e liberdade positiva, respectivamente.

Porque assentada numa concepção de mundo do direito natural, onde o indivíduo singular, com seus interesses e carências, precede a coletividade, é da natureza da doutrina liberal a afirmação individualista da sociedade. O regime democrático, por outro lado, enxerga uma relação orgânica entre indivíduo e sociedade. Daí a contradição, que faz do Estado liberal um Estado não necessariamente democrático, e faz dos termos “liberdade” e “poder”, termos antitéticos. O liberalismo quer limitar o poder, enquanto a democracia quer fazer maior o poder do cidadão, e enxerga no Estado esta possibilidade. Para fazer funcionar o regime democrático, o Estado tem de ser atuante e colocar o poder nas mãos da maior parte. No primeiro, busca-se a liberdade com relação ao Estado. No segundo, um atrelamento da liberdade ao Estado, para promover e garantir os direitos de cidadania dos indivíduos.

O liberalismo contemporâneo, particularmente o segmento convencionalmente chamado de novo liberalismo, embora sofrendo forte resistência do segmento neoliberal, sente necessidade de se oxigenar, levando em consideração o ponto de partida dos indivíduos, desde antes do berço, radicalizando a democracia e garantindo sua própria sobrevida. Ainda que isso manifeste uma aproximação demasiada da social-democracia e uma conseqüente descaracterização da doutrina, o movimento procura distinguir-se pela luta da defesa dos direitos e garantias do cidadão, da liberdade individual, sempre a partir da ordem burguesa dada. É isso que Rawls e os neo-contratualistas, de modo geral, têm em mente. Para eles, é preciso legitimar essa ordem, permanentemente, e a defesa da democracia talvez sirva de elemento complementar aos seus argumentos.

O grosso do liberalismo tem para si que o Estado é um instrumento de classe , que existe para impor os interesses de uma classe sobre a outra, mas quando a igualdade e a liberdade dos modernos já não dão conta de responder aos anseios populares promovidos pela democracia na contemporaneidade e os avanços no campo dos direitos de cidadania, particularmente aqueles de quarta e quinta gerações, a doutrina se vale da própria democracia para manter sua hegemonia. Tanto mais que, no momento em que a democracia sinaliza que já não basta a retificação das desigualdades através de mecanismos legislativos compensatórios, amparados na ideologia da igualdade de oportunidades e condições, o novo liberalismo busca argumentos e iniciativas menos improfícuas de equilíbrio social, tais como os sistemas de cotas adotados por algumas sociedades, que serve bem para evitar tensões sociais e garantir a si algum protagonismo nos novos tempos.

O saldo positivo de tudo que foi dito acima é que, em alguma medida, a doutrina começa a perceber que organicismo e individualismo precisam caminhar juntos, como valores complementares e não destoantes, e isso passa pela radicalização da democracia, por mais penosa e indigesta que seja a nova realidade para os liberais.

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