quarta-feira, 7 de julho de 2010

Estado e Sociedade no Pensamento Brasileiro

O pensamento político-social brasileiro contemporâneo provém das mais diversas áreas do conhecimento e está profundamente marcado pelo que se escreveu num passado não muito remoto. O pensamento do Visconde de Uruguai, de Tavares Bastos, de Joaquim Nabuco, de Rui Barbosa, de Alberto Torres, de Oliveira Vianna, de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque de Hollanda, de Nestor Duarte, de Caio Prado Jr., de Raymundo Faoro e de Victor Nunes Leal – duas ou três gerações de escritores – será basilar para tudo o mais que se produzir no Brasil a partir da década de 50 do século passado. É este pensamento que permeará o imaginário intelectual das gerações posteriores, que procurarão entender o Brasil através de suas raízes históricas, independentemente da linha ideológica privilegiada (Brandão, 2007).


Este pensamento toma forma a partir de 1870 e segue examinando os problemas brasileiros sob a perspectiva iberista até a década de 30 do século seguinte – o que não significa que cesse ali. Ele é composto de partes dissonantes e, exatamente por isso, Marçal Brandão o classifica em duas categorias distintas, chamando-os de “idealismo orgânico” e “idealismo constitucional”.

São estas vertentes que formarão famílias inteiras do pensamento social nacional a partir daí e que tentarão traduzir os porquês de sermos como somos e agirmos como agimos. Praticamente toda a reflexão político-social produzida ao longo do século XX estará de uma forma ou de outra, em maior ou menor escala, estrategicamente ou não, norteada por uma destas diretrizes, sendo possível verificar até mesmo, em muitos casos, uma combinação de ambas.

O primeiro desses grupos é chamado por Brandão de idealismo orgânico justamente por suscitar um Estado forte, centralizado, supostamente capaz de unir as ‘partes soltas’ da sociedade brasileira e construir o País. Ele é caracterizado por sua tendência conservadora a priorizar a autoridade estatal sobre a liberdade individual e, embora preconizado anteriormente pelo visconde do Uruguai, tem em Oliveira Vianna seu expoente maior.

O segundo grupo é caracterizado por seu apelo liberal à reconstrução do Estado via a priorização da liberdade individual. Tavares Bastos e Ruy Barbosa aparecem como os precursores deste pensamento entre nós e a mudança da forma de governo aparece como a panacéia para os males dessa sociedade. Brandão argumenta que ambas as linhagens se afinam ao afirmar a centralidade do papel do Estado na formação social brasileira, mas destoam entre si no momento em que a primeira o enaltece em seu formato leviatã, e a segunda o refuta.

Brandão deixa escapar, no entanto, a existência de alguma literatura que não somente escapa ao esquema, mantendo-se relativamente na marginalidade, como procura romper com essa tradição do pensamento político social brasileiro. Esta vertente se mostra incomodada com os resultados encontrados tanto pelo pensamento conservador quanto pelo liberal ao longo da história nacional, propondo um novo olhar sobre o Brasil através de uma releitura genealógica da gramática social do País. Para tal, ela sugere que se examine a realidade nacional, sob o olhar de uma teoria da ação social, qual seja, tomando a especificidade de nossa modernidade, iniciada com o advento do 1808, como ponto de partida e como fator estruturante das relações político-sociais que adviriam nos dois séculos seguintes, e enquanto marco fundador da sociedade brasileira.

De acordo com este pensamento, somente a ideologia moderna seria capaz de realizar certa homogeneização na composição da sociedade nacional, de forma que qualquer análise que não leve em consideração essa premissa, já está incorrendo em erro. E isto é mais ou menos o que fazem as duas vertentes tradicionais do pensamento social brasileiro quando analisam, por exemplo, a sociedade brasileira a partir do modelo estamental português, como se o modelo não ganhasse vida própria nos duzentos anos vindouros, como se a cultura fosse imbativelmente mais poderosa que as instituições modernas.

Segundo o raciocínio da teoria da ação social, a doutrina moderna não estivera presente entre nós durante os três primeiro séculos de vida brasileira e, quando chegou, haveria permanecido manca por mais de um século, ganhando, então, contornos um pouco mais definidos. É, pois, somente com a intensa aceleração de nosso processo de modernização, a partir da década de 30 do século passado, que se iria poder finalmente analisar o País homogeneamente. Residiria, pois, aqui a primeira maior inadvertência de interpretação tanto do idealismo orgânico quanto do idealismo constitucional visto, que ambas as vertentes assentariam em premissas pré-modernas.

Embora beba tanto numa fonte quanto na outra, esta vertente do pensamento político-social brasileiro faz críticas a ambas as vertentes, classificando-as como “teorias emocionais da ação”, ou seja, enquanto intérpretes das relações pessoais como estruturantes das relações sociais entre nós. A teoria da ação social entende que estas relações teriam, na verdade, um caráter secundário, levando o falso pressuposto a redundar em desacertos incomensuráveis na interpretação do País e nos diagnósticos por elas apresentados. Nas vertentes tradicionais, os indivíduos teriam sido analisados muito mais a partir de sua pessoalidade e muito menos a partir de suas ações racionais e planejadas.

Crítico do economicismo, tanto o liberal quanto o conservador, o idealismo moderno tece críticas também ao pensamento marxista, porque assentado tanto no idealismo orgânico quanto no idealismo constitucional. Esta vertente sugere que a própria leitura marxista da sociedade brasileira se acostumou a considerar os ‘estados internos’ como determinantes das ações sociais entre nós.

Tão ou mais grave que isso, entretanto, seria o fato de o pensamento marxista ter ficado preso ao seu conceito economicista de classe social, não atentando para outras variáveis decorrentes do pertencimento de classe e iludindo-se com a perspectiva de que a situação de classe pudesse conduzir os indivíduos à consciência de classe.

A teoria da ação social entende que variáveis tais como a noção de disciplina e de controle do corpo, inerentes ao capitalismo moderno, e a pressão permanente por aquisição de conhecimento útil, respeito e reconhecimento social, podem ter sido determinantes do processo histórico brasileiro, fazendo com que a sua desconsideração implicasse em interpretações e diagnósticos bem-intencionados e bem-elaborados da realidade social nacional, porém distantes dela.

Aqui, o conceito moderno de classe social não pode se restringir a renda ou a determinantes econômicos. A classe social é também transmitida inclusive por herança familiar através de ‘sinais invisíveis’, tais como o medo e a insegurança transmitida na infância, dos pais para os filhos, em famílias pobres, contrapondo-se ao estímulo da coragem e iniciativa dos ‘bem nascidos’.

O ponto alto da teoria da ação social, e a novidade que traz sem eu bojo, é, pois, o entendimento de que qualquer leitura da sociedade brasileira, bem como de qualquer sociedade moderna, deve ser feita a partir da racionalidade moderna, a partir de recortes da constituição de Estado e do mercado, como um tipo novo de estrutura social, capaz de criar outro tipo de personalidade e de motivações de conduta dos indivíduos.

A teoria da ação social nega a possibilidade de se situar o liberalismo atual na mesma linha de continuidade advindo tanto do idealismo orgânico quanto do idealismo constitucional e tenta romper com esta tradição. Esta vertente pós-neoliberal do pensamento político-social brasileiro não reconhece o Estado brasileiro como uma construção da tradição “ibérica”, caracterizando essa premissa muito mais como “erro de abordagem” do que como um “erro de origem”. Em sua perspectiva, o Estado brasileiro é uma obra que ganha aspectos genuinamente nacionais a partir da introdução das instituições modernas no País, com a transferência da Corte lusa para o Rio de Janeiro, e que, ao contrário do que pensam as vertentes descritas acima, este ‘pormenor’ é determinante para o tipo de sociedade que se constituirá por aqui. Considerar a proposta da teoria social da ação implicaria uma desconstrução de todo o edifício teórico do idealismo orgânico e do idealismo constitucional.

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