quarta-feira, 7 de julho de 2010

O resgate do argumento contratualista moderno no combate ao Estado mínimo

Uma das várias correntes do liberalismo, que chamo aqui de “novo liberalismo” e que tem no americano John Rawls seu mais nobre representante, pretende se tornar hegemônica na luta contra o segmento “neoliberal”, que começa a ganhar espaço no interior da doutrina em finais da década de 1960. O afã do novo liberalismo, sem dizer isso em claras palavras, se concentra justamente nessa negação do Estado mínimo, inaugurada por Adam Smith, e é essa a grande novidade que apresenta o neo-contratualismo. Para se fazer valer, a corrente lança mão, depois de duzentos anos de anestesia desse artifício, do argumento contratualista moderno, que assenta na igualdade entre todos os homens. O segmento apela ao argumento contratualista moderno para denunciar a fraqueza da própria doutrina. Sua lida é para compatibilizar liberdade e igualdade e transformá-las em valores complementares, e não antitéticos, e é com esta perspectiva que vou desenvolver o texto abaixo.


Se o argumento contratualista moderno entende que quando os homens vivem em uma comunidade jurídica, sua liberdade é restringida e a organização da sociedade implica desigualdade, o neo-contratualismo procura complementar essa compreensão. A liberdade não deve ser restringida, a menos que implique no tolhimento da igualdade entre os homens. Ou seja, deve haver um equilíbrio necessário entre igualdade e liberdade, sob pena de descaracterização da própria doutrina liberal. A outros segmentos do liberalismo em ascensão, nomeadamente o neoliberalismo, pouco interessava a igualdade, dando de ombros para o argumento contratualista moderno. No seu limite, buscava a liberdade, particularmente a econômica, pois entendia que a apropriação do excedente econômico não mais dependia do controle do Estado, razão esta porque desde antes cedera ao próprio sufrágio universal.

As convicções do novo liberalismo, ainda assim, longe estavam de significar um cheque em branco para o Estado; para que este se apodasse de toda a administração pública, ou que passasse a intervir nas liberdades fundamentais dos indivíduos. Tampouco evoca uma revisão dos direitos naturais dos indivíduos (nomeadamente, a propriedade), cuja defesa, na óptica liberal, é o fim último da organização política. A sua principal preocupação reside em compatibilizar igualdade e liberdade, para garantir a própria sobrevida da doutrina. O que buscará, é melhorar o intricado relacionamento entre os valores antitéticos da liberdade e igualdade, procurando realizar um quase sem prejuízo do outro. O desafio é exatamente este: realizar plenamente um sem limitar fortemente o outro, possibilitando uma sociedade liberal-liberalista e igualitária, assim como uma sociedade igualitária liberal, pensado impossível até ali.

A partir dessa junção necessária, o novo liberalismo reconstrói os mais variados conceitos e teorias, sobre democracia, justiça e legitimidade – como o faz Rawls com seu conceito de justiça –, muitos dos quais até mesmo um tanto fantasiosamente, quando aplicados às sociedades de classes – artificialmente eliminadas. No seu limite, o “novo liberalismo” é conservador: a mudança deve ficar restrita ao aperfeiçoamento do que já existe. Não extrapola uma retomada, do zero. Para ele, o essencial passa a ser a defesa dos direitos e garantias do cidadão, a liberdade individual, a partir da ordem burguesa dada. É isso que Rawls e os neo-contratualistas, de modo geral, têm em mente. Para eles, é preciso legitimar essa ordem, permanentemente.

No novo liberalismo, permanece urgente a necessidade de equilibrar os limites do governo, ou os “limites da ação do Estado”, garantindo um lugar ao sol às liberdades individuais e à propriedade. É fato que, na iminência de perder credibilidade no contexto da Guerra Fria dos anos setenta, o segmento não pretende romper com a linha do “laisser faire” nas coisas da economia e, tampouco, da política, mas busca transformar-se em ideologia de massas, preocupando-se muito mais com a concentração do capital e da renda e advertindo contra as tendências monopolistas que sempre tiram proveito da “livre concorrência” capitalista. O segmento, que, ao contrário da social-democracia, pensa ser possível atingir a liberdade individual mantendo-se as raízes burguesas do Estado – e, na medida do possível, radicalizar a democracia –, já não acredita cegamente na “mão invisível”, contentando-se com a supremacia do “mercado”. Mas não é exatamente essa preocupação que faz com que essa corrente se valha do contratualismo clássico, desse “artifício de representação”, para justificar seu resgate. Para ela, o segmento neoliberal extrapolava e descaracterizava a teoria contratualista, priorizando demasiado o indivíduo em detrimento da comunidade.

O novo liberalismo tinha claro que a concepção individualista da liberdade impedia que o Estado protegesse os menos afortunados, decorrendo numa crescente injustiça social, pois assegurava a todos o direito de ser livre, mas só podia alcançar essa liberdade os que eram economicamente fortes. Exatamente por isso, não permite descolar a sua idéia de liberdade do argumento contratualista de igualdade. Para se fortalecer frente ao perigo vermelho e as promessas cativantes da social-democracia, o ideal liberal – que defendia a esfera individual – precisava se mostrar compatível com o ideal igualitário, aspirando um tipo de sociedade voltada para a uniformidade dos modos de vida e de condições e salvaguardando a liberdade através das instituições da democracia.

Sem enxergar rastros de contradição interna, o movimento busca colocar rédeas nas investidas da esfera privada, procurando desoxigenar um pensamento liberal de direita em ascensão que combina a preocupação com a defesa da liberdade do cidadão contra o Estado com perspectivas sociais extremamente reacionárias, elitistas, e antipopulares. O grupo acreditava que a falta de oportunidades de emprego, educação, saúde, etc, resultantes das propostas neoliberais, podiam ser tão prejudiciais para a liberdade como a compulsão e a coerção. Para o segmento, o que legitima a autoridade peculiar pretendida pelo Estado e serve de ponto de partida para o argumento contratualista na versão moderna, é justamente o fato de os indivíduos serem naturalmente livres e iguais. Seria injusto, pois, deixar de considerar um destes elementos em suas ações políticas – o que fazia o segmento neoliberal. Daí porque, em sua versão contemporânea, o argumento contratualista extravasa de um argumento eminentemente político para uma discussão em torno de princípios de justiça, ampliando o alcance original do argumento.

O novo liberalismo, em última instância, sabia bem que as classes dominantes representam uma extrema minoria de pessoas, e que essa minoria não poderia dominar politicamente a imensa maioria dos despossuídos não fosse o uso de suas várias instituições, do chamado aparelho de Estado. O legislativo, o judiciário, o sistema de ensino, o aparato administrativo, a polícia e as forças armadas são os instrumentos que os segmentos dominantes usam para manter o ânimo das massas em relativa inércia, e nisso não havia grandes novidades. A diminuição do Estado poderia resultar em efeito devastador para si próprios, e é este o alerta central dos novos liberais aos neoliberais – o que fará com que estes admitam a presença do Estado nas áreas fundamentais para sua segurança e para a manutenção da ordem n momento em que experimentam certa hegemonia no cerne do liberalismo dos anos de 1980-1990. O Estado precisa, pois, ser entendido como um meio de dominação silenciosa e não um fim em si mesmo, e não é outro o cálculo de base da labuta neo-contratualista.

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