sábado, 5 de junho de 2010

O estabelecimento da ordem senhorial no Império – Murilo de Carvalho e o “teatro de sombras”; a política imperial

O objetivo de Murilo de Carvalho nesta obra é examinar a atuação da elite política no momento em que a tarefa de consolidação do poder político parecia realizada e em que novos desafios se colocavam para ela e o Estado. Em outra parte deste trabalho – “A Construção da ordem – A Elite imperial”, o autor discutira a política imperial sob a ótica de seus agentes diretos, ou seja, a elite política e a burocracia. Ali, o autor tenta relacionar as características da elite, particularmente sua homogeneidade ideológica, gerada por educação e treinamento político comuns, com as características do Estado herdado da tradição portuguesa absolutista e patrimonial. Do processo de geração mútua entre Estado e elite é que resultou em boa parte, segundo o autor, alguns dos traços marcantes do sistema político imperial, como sejam, a monarquia, a unidade, a centralização, a baixa representatividade.

A elite produzida deliberadamente pelo Estado foi eficiente na tarefa de fortalece-lo, particularmente em sua tarefa de controle da sociedade. Ela foi eficiente em atingir o objetivo de construção da ordem, objetivo que, parafraseando Marx, o autor chamou de “acumulação primitiva do poder”. O que o autor faz nesta segunda parte é examinar, de uma forma mais aprofundada, a elite e o Estado no momento em que a tarefa de acumulação do poder estava realizada, e em que novos horizontes se abriam à sua atuação. Este momento pode ser datado como a partir de 1837 quando as incertezas da Regência começaram a dar lugar a um esboço de sistema de dominação mais sólido, centrado na aliança entre, de um lado o Rei e a alta magistratura, e, de outro lado, o grande comércio e a grande propriedade. O processo de enraizamento social da Monarquia, de legitimação da Coroa perante as forças dominantes do país, foi difícil e complexo. Embora se possa dizer que estava definido até a década de 1850, ele permaneceu tenso até o final do Império.

A primeira grande tese do autor é que a elite política realizou a tarefa de consolidação do poder político durante o Segundo Reinado pelo convencimento junto às classes dominantes de que a Monarquia, assentada no Poder Moderador , se mostraria muito eficiente na resolução de conflitos de interesses no seio das próprias classes dominantes. Além disso, para evitar os chamados excessos das representações populares nas assembléias, fazia-se necessário, pois, unificar as classes dominantes em torno do Poder Moderador do Rei e, com isso, blindar o Estado contra-revolucionário que se avolumava. Essa tarefa coube à intelectualidade da elite política que aconselhou o Imperador a distribuir símbolos de status via a forma de títulos nobiliárquicos, sobretudo de barão, aos descontentes como forma de gratidão pela adesão á causa.

Para sustentar sua tese, Murilo de Carvalho argumenta que, nos anos que se seguiram à Independência, sobretudo nos anos regenciais , não houve consenso entre estas camadas dominantes sobre o tipo de arranjo institucional que melhor servisse aos interesses diversos ali representados. Havia, pois, a ameaça latente e perigosa de fragmentação do poder político, com conseqüências imprevisíveis para as classes dominantes. Um segundo argumento de sustentação para a tese do autor é que, muitos destes segmentos, sobretudo o dos proprietários rurais, não estando preparados para conceber a dominação através da mediação do Estado, procuravam resolver seus problemas via a força bruta, via o recrutamento popular à lutas sangrentas. É daí que explodem várias revoltas ocorridas no período que vai de 1831 a 1848 – Sabinada (Bahia), Cabanagem (Pará), Balaiada (Maranhão), Farroupilha (Rio Grande do Sul), Praieira (Pernambuco), e outras de menor expressão. Neste período, cinco levantes populares exigindo a federação na capital do país, o Rio de Janeiro, seis outros na antiga capital, Salvador, e três em Recife, levaram a Regência a enviar tropas do exército, a priori, e da Guarda Nacional, a posteriori, para esmagar as tentativas do que entendeu ser de desagregação nacional. O caráter dessa primeira onda de revoltas, que gira entre 1831 e 1832, estava muito mais ligada às coisas do cotidiano – alto custo de vida, predominância portuguesa no comércio, e coisas do gênero – do que de questões que ameaçassem a ordem vigente, como aquelas que têm início a partir de 1832 – embora se tivesse, por vezes, levantado a questão da federação –, mas seu rápido crescimento, com o apoio de alguns grandes proprietários, tornou-se também problema sério para as classes dirigentes do jovem país.

Murilo de Carvalho argumenta ainda que as revoltas acima descritas contaram com ampla participação popular – população urbana, campesinato e, em alguma medida, dos escravos –, a solução clássica estaria, pois, na repressão violenta. Todavia, como tais revoltas contavam em seus quadros com parte significativa dos membros das classes dominantes, o arranjo institucional passava pelo convencimento deste segmento à aceitação do poder estatal. A contrapartida encontrada pelas camadas mais esclarecidas da elite política e intelectual foi a de salvaguardar especialmente os interesses dos dois segmentos de maior peso econômico do período, que eram os grandes agricultores e os grandes comerciantes.

O autor argumenta ainda que a Regência falhara nos dois testes, ou seja, a ordem fora constantemente quebrada, pondo em perigo a própria sobrevivência do país, e os Regentes eleitos tinham se revelado incapazes de arbitrar divergências internas dos grupos dominantes. Confeccionada e intermediada pela minoria liberal de proprietários de escravos e terras, a proposta tinha também como objetivo, enfraquecer a possibilidade de uma ditadura conservadora que rondava a Regência, além de evitar o monopólio do poder por facções – a oposição, a partir dali, seria meramente retórica. A solução liberal acabou por fornecer a legitimidade básica do sistema, já aos finais dos anos quarenta, conformando, por um lado, as elites dirigentes da nação e, por outro, impedindo o surgimento de novas revoltas populares lideradas pelo senhorio descontente.

Uma segunda grande tese do autor é que a emergência da Abolição deixara o sistema imperial sem representatividade. Neste momento, o segmento dominante já não estava tão dividido quanto quando da Regência, e se mostrava indiferente quanto à sorte da monarquia. A situação, agora, era adversa dos anos 40 quando a conveniência do momento determinou que as elites econômicas, culturais e políticas se unissem na figura do Imperador para abafar os conflitos internos deste segmento. De fato, o arranjo institucional que as elites vão confeccionar para assegurar a dominação política e econômica já não descarta a eliminação da escravidão, mas inclui a superação do sistema imperial. A monarquia, simpática à causa abolicionista, deixou de criar uma base de sustentação, perdendo sua legitimidade. Se o regime imperial tinha sido fiel às classes proprietárias no que concerne à Lei de Terras e à imigração, ela falhara ao ratificar a Lei do Ventre Livre, dos Sexagenários, ao apoiar a própria Abolição e ao incentivar uma economia de mercado. A tarefa de reconsolidação do poder político das elites dominantes do país não inclui, desta vez, a Monarquia, que se tornara um obstáculo aos seus anseios e, por isso, o sistema monárquico estava sem representatividade.

Um primeiro argumento de sustentação para esta tese de Murilo de Carvalho é que a base de sustentação da monarquia, o que lhe garantia representatividade, já não poderia ser a do senhorio rural, pois a manutenção do sistema escravista estava relacionada à própria manutenção da monarquia; o fim de um representaria o divórcio entre o rei e os barões, os maiores interessados na conservação do sistema. Essa base de sustentação igualmente não poderia ser o Exército, pois este, especialmente agora, com a introdução no seu interior das idéias de Auguste Comte, se mostrava antipático à Monarquia, bem como aos proprietários de terras, classe esta que apoiara o Regime até aqui. Ela também não poderia ser de ordem popular, pois, ao final do século XIX, a quase totalidade das pessoas vivia ainda sob o controle dos donos de terras, ou seja, gente que não podia representar-se no sistema.

Num segundo argumento de sustentação para sua tese, Murilo de Carvalho afirma que, sem base de apoio específico à monarquia, a representatividade assumia um caráter muito mais nacional do que de natureza liberal – interesses de grupos, classes ou indivíduos, cujo somatório resultasse no interesse geral. Se o controle do Estado imperial, centralizado, sobre as classes proprietárias pouco ou nem um sentido passa a fazer aos olhos destas, a representação, de um modo geral, se fazia no vazio, vista haver uma cidadania reduzida – especialmente agora, com a aprovação da restrição à participação popular. Não havia povo, mas massas, absolutamente desarticuladas; um processo completamente distinto do sentido inglês de povo.

Dessa falta de representatividade da monarquia, que resultaria em sua queda, é que se justifica o título do livro de Murilo de Carvalho. O teatro de sombras sugere a inoperância do Imperador e a falta de perspectiva do Regime em sobreviver. O Regime, sem representatividade, vive da representação do real, onde o Rei fingia governar um povo livre, numa teatralidade lamentável que se estende por várias décadas até cair ‘como um fruto maduro’.

NOTA EXPLICATIVA

O Parlamentarismo

Terminadas as lutas provinciais, a Monarquia brasileira caminhava para a estabilização. Em 1847, um decreto criou o cargo de presidente do Conselho de Ministros, indicado pessoalmente pelo Imperador. Muitos historiadores consideram que aí se inaugurou o sistema parlamentarista no Brasil.

No parlamentarismo, regime constitucional de Repúblicas ou Monarquias, o Poder Executivo é exercido pelo Primeiro-Ministro, que é quem governa com o apoio do Parlamento, da Câmara. Assim, quando o Parlamento retira seu voto de confiança, o gabinete de Ministros automaticamente apresenta sua renúncia. O poder maior é, portanto, do Parlamento, do qual depende a permanência ou não no Governo do Primeiro-Ministro.

O sistema parlamentarista implantado no Brasil, durante o governo pessoal de D. Pedro II, inspirou-se no modelo inglês. No entanto, o modelo brasileiro era a inversão do inglês, ficando por isso conhecido como Parlamentarismo às avessas, porque o Poder Legislativo, não nomeava o Executivo, mas, sim, subordinava-se a ele. Na Inglaterra realizavam-se primeiramente as eleições para a Câmara. O partido que possuísse maioria escolhia o Primeiro-Ministro, que formava o gabinete de ministros, passando a exercer o Poder Executivo.

No Brasil, ao contrário, era o Poder Moderador, exercido por D. Pedro II, que escolhia o Presidente do Conselho de Ministros. Por sua vez, o Primeiro-Ministro indicava os demais ministros para formar o Ministério, que deveria ser submetido à aprovação da Câmara. Em caso de discordância entre o Ministério e a Câmara, cabia ao Imperador decidir se demitia o Ministério ou dissolvia a Câmara. Com base no Poder Moderador podia, após ouvir o Conselho de Estado, dissolver a Câmara e convocar novas eleições. Da mesma maneira poderia demitir o Primeiro – Ministro e todos os outros Ministros. Como nas eleições da época a influência do governo era muito grande, os candidatos da situação sempre ganhavam as eleições e o Imperador conseguia eleger uma Câmara que se harmonizava com o Ministério por ele escolhido.

Assim, no Parlamentarismo brasileiro, o Poder Executivo permaneceu nas mãos do Imperador, que o exercia com seus Ministros, levando à centralização político-administrativa do Império e ao fortalecimento da autoridade do Governo do Estado. Os Partidos, liberal e conservador, passaram a disputar o Ministério, alternando-se no Governo. O rodízio no poder entre liberais e conservadores revelava a identidade que havia entre eles. Seus interesses não eram diferentes entre si nem com relação aos de D. Pedro II. Eram membros da mesma camada social – a dos grandes proprietários de escravos e de terras -, o que explica a identificação de ambos com os projetos centralizadores do Imperador.

Durante cinqüenta anos, 36 gabinetes sucederam-se no poder. Os conservadores foram os que mais tempo dominaram o Governo do Império: 29 anos e dois meses. Os liberais, malgrado seus 21 gabinetes, governaram apenas 19 anos e cinco meses.

Venceslau Alves de Souza

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