sábado, 15 de maio de 2010

O uso de semióforos no forjamento da nação

A sociedade brasileira é resultado de um mito criado pelas elites intelectuais do país, capaz de mantê-la unida no longo processo de formação da nação. É com essa perspectiva que Marilena Chauí trabalha em sua obra “Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária”. Segundo a autora, se criou historicamente no Brasil uma idéia positiva deste país, que ficou presente nos corações e mentes das pessoas, obnubilando as questões políticas propriamente ditas.

A autora denomina de mito fundador o processo que criou condições para a chegada nesta condição e propõe-se abordar o tal processo sob uma ótica que vai além do entendimento histórico dos fatos. Apesar de embasar-se em Hobsbawn, a obra sobrepuja os fatos históricos, superestimando a memória do tempo fundacional (colônia) – fazendo-se vítima da mesma emboscada que denuncia. Como se trata de um texto preparado para o grande público, a autora se permite não indicar fontes e obras de referência, exceto raramente. Como conseqüência, a retórica do texto se vale de certo “reconhecimento de mérito” para sustentar as análises da autora sobre a sociedade brasileira.

O termo ‘mito’, na obra de Chauí, vai além do sentido etimológico de feitos lendários. Ela o abrange mesmo em seu sentido antropológico, usado como instrumento de preenchimento do imaginário popular na resolução de tensões, conflitos e contradições, difíceis de serem solucionadas no nível da realidade. O termo ‘fundador’, por sua vez, como a própria palavra sugere, está ligado às origens, mas não somente. Chauí sugere o uso da acepção psicanalítica para o termo, como uma tendência à repetição do imaginário acima descrito, capaz de bloquear a percepção da realidade e de impedir sua transformação.

Nesse sentido, fundação não pode ser confundida com formação. Enquanto a segunda se relaciona à história propriamente dita – processo histórico e ideologias nele contidas –, a primeira é pura imaginação, fantasia que consegue manter-se viva no curso do tempo. Ao contrário da formação, a fundação corre paralelamente ao processo histórico, mas não se encontra com ele, permanecendo perene no campo do imaginário, embora determinante das ações dos homens.

No Brasil em particular, explica Chauí, o mito fundador (fantasioso) é o de que Deus tratou o Brasil de modo especialmente particular, dando a ele gigantesco território, de águas límpidas. Ao território livre de desgraças naturais e de temperatura amena, de gente pacífica e ordeira, Deus reservou-lhe ainda destino grandioso, conforme retratado nas poesias de Bilac, nas obras de Rocha Pita, de Euclides da Cunha e de Afonso Celso. O próprio Hino Nacional mostra um ‘povo heróico’, determinado pelo ‘gigantismo da Natureza’. A história do Brasil é, dessa forma, vista como realização do plano de Deus, da vontade divina. Aqui desaparece o processo histórico, levando consigo as questões de cunho político.

Para chegar a tal conclusão, Chauí trabalha o conceito de nação como fruto de um semióforo, ou seja, um sinal ou imagem capaz de ligar o visível ao invisível, que “pega”, e permanece no imaginário das pessoas. Usados geralmente pela elite intelectual para tornar uma dada sociedade una e indivisível, os semióforos se manifestam em instituições como bibliotecas, escolas, museus, patrimônio histórico e geográfico, monumentos celebratórios, entre outros. Não parece exagero afirmar, portanto, que a invenção da nação passa quase que necessariamente pelo processo de construção de semióforos.

Sob a égide do semióforo, a gênese dos fatos históricos é esvaziada. Ela não pode ser explicada sob a perspectiva histórica e sua fundamentação deve ser entendida sob uma perspectiva paralela aos fatos históricos, justificada via o mágico, o inexplicável. É dessa forma que, via, por exemplo, a obra de Deus, se justifica a existência de uma Natureza tão exuberante no Brasil. A palavra de Deus, o mito fundador, se transforma na história, mantendo coesa a sociedade, e que ninguém se atreva a ir contra a vontade divina. A força do semióforo está, assim, em sua capacidade de transformar o irreal em real, o mito fundador em história.

Buscando obnubilar a própria luta de classes, esvaecendo os conflitos e as tensões, os semióforos operam no sentido de nivelar por cima todas as classes sociais, de forma a camuflar os incontáveis conflitos vigentes no seio delas e a justificar a existência da nação una. O eficiente semióforo utilizado pelo Estado Português quinhentista para justificar sua incursão no Brasil é a distribuição destas terras entre uns poucos ‘donatários’. A capitania é um dom do rei, portanto indiscutível, e seus Senhores são donatários, fieis ao rei. Enquanto o mito fundador trabalha no sentido de justificar a existência do território e da natureza como obra de Deus, o semióforo tem como função básica conectar essa obra à necessidade de formação de uma nação capaz de interagir com os desígnios divinos. Esses semióforos no Brasil contemporâneo traduzem-se, não obstante, em tudo aquilo que possa estar relacionado ao ‘verdeamarelismo’, numa palavra, futebol, carnaval, novelas.

A partir dos anos 1930, esse ‘verdeamarelismo’ é utilizado pelo Estado brasileiro para garantir que a “questão nacional” fosse alcançada. Chauí alerta que o ‘verdeamarelismo’ é instrumentalizado para se fixar no imaginário popular, e utilizado segundo interesses específicos das classes dominantes, tendo como propósito último neutralizar o proletariado enquanto agente transformador e cooptá-lo para a aceitação da vida social como ela está dada. Aqui, o semióforo atua no sentido de isolar a luta de classes, procurando atribuir à relação capital-trabalho não um caráter conflituoso, mas, contrariamente, cooperativo – sob a tutela do Estado.

Chauí observa que os intelectuais desse período mostram-se bastante preocupados com o problema da identidade nacional e das instituições, querendo chamar para si a tarefa de forjar uma consciência nacional e promover a organização da nação. Com a modernização que se anunciava, Gilberto Freyre e Plínio Salgado, defensores de semióforos ligados à natureza, são desbancados, dando lugar àqueles que se adaptam à nova realidade. Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Nestor Duarte, adeptos da modernização, esses pensadores enquadrar-se-ão muito menos relutantemente ao semióforo ‘desenvolvimentismo’, que desbancara a Natureza enquanto promotora do progresso brasileiro. O mito fundador, entrementes, não desaparece. O Brasil permanece ‘gigante pela própria natureza’, presente de Deus, e constituído por um ‘povo heróico’. E é exatamente por isso que o ‘desenvolvimentismo’ é feito possível e o ‘milagre econômico é tornado crível. O semióforo ‘milagre brasileiro’, encarregar-se-á, mais adiante, de desbancar os semióforos criados a partir da imagem de Carmem Miranda no vazio semioforal deixado pelo Estado Novo durante os anos cinqüenta.

O Brasil moderno do último quartel do século preservará seus mitos fundadores. A questão nacional aqui aparece como uma obra inacabada, em eterna construção. Os semióforos – encarregados de dissimular a cidadania capenga que os números da Nação revelam – são criados de acordo com a conveniência do momento. A chama do ‘verdeamarelismo’ não se apaga e a crença de que nascemos para nos agigantarmos se perpetua.

Resta-nos entender como funcionam, se atualizam e se fortalecem os mecanismos que permitem manter unida a nação, tarefa esta inócua se dispensada a mediação da análise histórica propriamente dita. Os mitos e os semióforos que lhe dão sustentação, utilizados pelos Estados para justificar sua própria existência, estão sempre unidos por visgos históricos imperativos, sem os quais não têm como se justificar.

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