A sociedade brasileira é resultado de um mito criado pelas elites intelectuais do país, capaz de mantê-la unida no longo processo de formação da nação. É com essa perspectiva que Marilena Chauí trabalha em sua obra “Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária”. Segundo a autora, se criou historicamente no Brasil uma idéia positiva deste país, que ficou presente nos corações e mentes das pessoas, obnubilando as questões políticas propriamente ditas.
A autora denomina de mito fundador o processo que criou condições para a chegada nesta condição e propõe-se abordar o tal processo sob uma ótica que vai além do entendimento histórico dos fatos. Apesar de embasar-se em Hobsbawn, a obra sobrepuja os fatos históricos, superestimando a memória do tempo fundacional (colônia) – fazendo-se vítima da mesma emboscada que denuncia. Como se trata de um texto preparado para o grande público, a autora se permite não indicar fontes e obras de referência, exceto raramente. Como conseqüência, a retórica do texto se vale de certo “reconhecimento de mérito” para sustentar as análises da autora sobre a sociedade brasileira.
O termo ‘mito’, na obra de Chauí, vai além do sentido etimológico de feitos lendários. Ela o abrange mesmo em seu sentido antropológico, usado como instrumento de preenchimento do imaginário popular na resolução de tensões, conflitos e contradições, difíceis de serem solucionadas no nível da realidade. O termo ‘fundador’, por sua vez, como a própria palavra sugere, está ligado às origens, mas não somente. Chauí sugere o uso da acepção psicanalítica para o termo, como uma tendência à repetição do imaginário acima descrito, capaz de bloquear a percepção da realidade e de impedir sua transformação.
Nesse sentido, fundação não pode ser confundida com formação. Enquanto a segunda se relaciona à história propriamente dita – processo histórico e ideologias nele contidas –, a primeira é pura imaginação, fantasia que consegue manter-se viva no curso do tempo. Ao contrário da formação, a fundação corre paralelamente ao processo histórico, mas não se encontra com ele, permanecendo perene no campo do imaginário, embora determinante das ações dos homens.
No Brasil em particular, explica Chauí, o mito fundador (fantasioso) é o de que Deus tratou o Brasil de modo especialmente particular, dando a ele gigantesco território, de águas límpidas. Ao território livre de desgraças naturais e de temperatura amena, de gente pacífica e ordeira, Deus reservou-lhe ainda destino grandioso, conforme retratado nas poesias de Bilac, nas obras de Rocha Pita, de Euclides da Cunha e de Afonso Celso. O próprio Hino Nacional mostra um ‘povo heróico’, determinado pelo ‘gigantismo da Natureza’. A história do Brasil é, dessa forma, vista como realização do plano de Deus, da vontade divina. Aqui desaparece o processo histórico, levando consigo as questões de cunho político.
Para chegar a tal conclusão, Chauí trabalha o conceito de nação como fruto de um semióforo, ou seja, um sinal ou imagem capaz de ligar o visível ao invisível, que “pega”, e permanece no imaginário das pessoas. Usados geralmente pela elite intelectual para tornar uma dada sociedade una e indivisível, os semióforos se manifestam em instituições como bibliotecas, escolas, museus, patrimônio histórico e geográfico, monumentos celebratórios, entre outros. Não parece exagero afirmar, portanto, que a invenção da nação passa quase que necessariamente pelo processo de construção de semióforos.
Sob a égide do semióforo, a gênese dos fatos históricos é esvaziada. Ela não pode ser explicada sob a perspectiva histórica e sua fundamentação deve ser entendida sob uma perspectiva paralela aos fatos históricos, justificada via o mágico, o inexplicável. É dessa forma que, via, por exemplo, a obra de Deus, se justifica a existência de uma Natureza tão exuberante no Brasil. A palavra de Deus, o mito fundador, se transforma na história, mantendo coesa a sociedade, e que ninguém se atreva a ir contra a vontade divina. A força do semióforo está, assim, em sua capacidade de transformar o irreal em real, o mito fundador em história.
Buscando obnubilar a própria luta de classes, esvaecendo os conflitos e as tensões, os semióforos operam no sentido de nivelar por cima todas as classes sociais, de forma a camuflar os incontáveis conflitos vigentes no seio delas e a justificar a existência da nação una. O eficiente semióforo utilizado pelo Estado Português quinhentista para justificar sua incursão no Brasil é a distribuição destas terras entre uns poucos ‘donatários’. A capitania é um dom do rei, portanto indiscutível, e seus Senhores são donatários, fieis ao rei. Enquanto o mito fundador trabalha no sentido de justificar a existência do território e da natureza como obra de Deus, o semióforo tem como função básica conectar essa obra à necessidade de formação de uma nação capaz de interagir com os desígnios divinos. Esses semióforos no Brasil contemporâneo traduzem-se, não obstante, em tudo aquilo que possa estar relacionado ao ‘verdeamarelismo’, numa palavra, futebol, carnaval, novelas.
A partir dos anos 1930, esse ‘verdeamarelismo’ é utilizado pelo Estado brasileiro para garantir que a “questão nacional” fosse alcançada. Chauí alerta que o ‘verdeamarelismo’ é instrumentalizado para se fixar no imaginário popular, e utilizado segundo interesses específicos das classes dominantes, tendo como propósito último neutralizar o proletariado enquanto agente transformador e cooptá-lo para a aceitação da vida social como ela está dada. Aqui, o semióforo atua no sentido de isolar a luta de classes, procurando atribuir à relação capital-trabalho não um caráter conflituoso, mas, contrariamente, cooperativo – sob a tutela do Estado.
Chauí observa que os intelectuais desse período mostram-se bastante preocupados com o problema da identidade nacional e das instituições, querendo chamar para si a tarefa de forjar uma consciência nacional e promover a organização da nação. Com a modernização que se anunciava, Gilberto Freyre e Plínio Salgado, defensores de semióforos ligados à natureza, são desbancados, dando lugar àqueles que se adaptam à nova realidade. Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Nestor Duarte, adeptos da modernização, esses pensadores enquadrar-se-ão muito menos relutantemente ao semióforo ‘desenvolvimentismo’, que desbancara a Natureza enquanto promotora do progresso brasileiro. O mito fundador, entrementes, não desaparece. O Brasil permanece ‘gigante pela própria natureza’, presente de Deus, e constituído por um ‘povo heróico’. E é exatamente por isso que o ‘desenvolvimentismo’ é feito possível e o ‘milagre econômico é tornado crível. O semióforo ‘milagre brasileiro’, encarregar-se-á, mais adiante, de desbancar os semióforos criados a partir da imagem de Carmem Miranda no vazio semioforal deixado pelo Estado Novo durante os anos cinqüenta.
O Brasil moderno do último quartel do século preservará seus mitos fundadores. A questão nacional aqui aparece como uma obra inacabada, em eterna construção. Os semióforos – encarregados de dissimular a cidadania capenga que os números da Nação revelam – são criados de acordo com a conveniência do momento. A chama do ‘verdeamarelismo’ não se apaga e a crença de que nascemos para nos agigantarmos se perpetua.
Resta-nos entender como funcionam, se atualizam e se fortalecem os mecanismos que permitem manter unida a nação, tarefa esta inócua se dispensada a mediação da análise histórica propriamente dita. Os mitos e os semióforos que lhe dão sustentação, utilizados pelos Estados para justificar sua própria existência, estão sempre unidos por visgos históricos imperativos, sem os quais não têm como se justificar.
sábado, 15 de maio de 2010
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